Nos últimos cinco anos (de 2018 a 2023), foram registrados 198 eventos operacionais em instalações nucleares do ciclo do combustível; em Angra 1 e Angra 2, foram 18, com relato obrigatório (REN1), e 54, não obrigatório, mas de interesse (REN2). No mesmo período, 27 “incidentes” de segurança de baixo, médio e alto níveis de gravidade foram registrados em instalações radiativas no território nacional. Trata-se de condições não previstas, sem classificação de acidente. Os números constam em relatório, fruto de auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), publicado ontem pelo órgão, para mostrar a urgência de o governo legitimar a Autoridade Nacional de Segurança Nuclear (ANSN), destinada à fiscalização de unidades nucleares, por exemplo.
O objetivo da auditoria é avaliar se as medidas adotadas para a estruturação da ANSN estão adequadas ao que dispõe a Lei 14.222/2021 e acompanhar a estruturação do órgão. O nome indicado pelo governo para ocupar a direção da ANSN deverá ser sabatinado pelo Senado. O Ministro Bruno Dantas preside a auditoria com relatoria do ministro Aroldo Cedraz. Há décadas, todas as atividades estão acumuladas sob o guarda-chuva da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), na contramão de outros países e em desacordo com a Convenção Internacional de Viena, de 1994, da qual o Brasil é signatário, para garantir a fiscalização segura para a população e o meio ambiente.
Um evento nuclear de maiores proporções poderá vir a se configurar como “erro grosseiro”. A própria CNEN, observou o TCU, gerencia diretamente onze instalações nucleares, 25 instalações radioativas e cinco depósitos de rejeitos, dos quais apenas 18,18%, 44% e 20% estão regularmente licenciados. “Essa situação denota o aparente conflito de interesse, já que a CNEN é ao mesmo tempo a entidade regulatória, licenciadora e gestora d instalações sujeitas a licenciamento”, afirma o TCU. O TCU lembra que a CNEN tem previsão de 3.267 cargos efetivos, dos quais apenas 1.399 (42%) estão providos. Sem concurso desde 2014, a Comissão está subordinada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), enquanto a ANSN ficará sob a responsabilidade do Ministério de Minas e Energia (MME).
GRAVIDADE DOS EVENTOS -
De acordo com o TCU, a CNEN afirma que a inexistência de gradação da gravidade dos eventos está associada ao próprio poder sancionador legal da Comissão, que se resume à possibilidade de cassar ou suspender as licenças ou autorizações concedidas. “Logo, a CNEN conclui que é fora de propósito estabelecer níveis de gravidade. Destaca, contudo, que a Lei 14.222/2021 (criando a ANSN) corrigiu a falta de gradação na coerção, uma vez que classifica as infrações administrativas quanto à gravidade em três níveis - leves, graves e gravíssimas”.
No tocante às sanções possíveis, o artigo 14 da Lei 14.222/2021 estabelece a possibilidade de aplicação de multa, suspensão temporária parcial ou total de funcionamento da instalação nuclear; revogação de autorização ou licenciamento para o exercício da atividade ou para a instalação ou o perdimento de equipamentos e materiais nucleares e radiológicos apreendidos.
Em relação à quantidade de eventos relatada, percebe-se que há uma constância na ocorrência (com exceção do ano de 2022, em que os eventos do tipo REN2 foram treze a mais do que em 2021). Constata-se, a partir das informações da CNEN, que a maneira de atuação quanto aos eventos operacionais é bastante restrita, em função da possibilidade apenas de uma atuação binária (cassação/suspensão).
FORTE REPERCUSSÃO -
Vale observar que, por mais que sejam poucos eventos com maior gravidade, a ocorrência de um único evento de grandes proporções pode ter forte repercussão, como o acidente relativo à contaminação de centenas de pessoas pela radiação de Césio-137, ocorrido na cidade de Goiânia em 1987, cujos efeitos em termos de gravidade somente foram considerados menos danosos do que o evento de Chernobyl, em 1986.
Necessário destacar que, acrescenta o TCU, desde a publicação da Lei 14.222/2021, houve quatro eventos operacionais que poderiam ter sido tratados de acordo com as prescrições da nova lei. Com os seguintes comentários da CNEN sobre as ações que adotou em cada um desses fatos:
No caso do “derramamento de material radiativo no mar de Angra dos Reis (setembro/2022)”, a Comissão informa que foram geradas vinte exigências, das quais oito foram atendidas e as demais estão sob controle da diretoria do setor. “O evento não foi associado a um risco indevido, portanto, sem necessidade de suspensão do funcionamento de Angra 1. Entretanto, destaca que 'eventuais penalidades poderiam ter sido consideradas, mas não foram em virtude de inexistências destas no marco legal vigente”. O caso foi noticiado pelo GLOBO.
O desaparecimento de duas cápsulas de Césio-137 em Nazareno/MG (junho/2023), noticiado pelo BLOG, segundo a CNEN, após ter sido comunicada a respeito do evento pela empresa AMG Mineração, houve inspeção regulatória com apresentação de Relatório de Inspeção em que foram listadas dezenove não conformidades. “Foram identificadas: a) fontes radiativas armazenadas em locais inadequados; b) ausência de identificação das fontes e falta de sinalização de presença de material radiativo e c) treinamento inadequado dos indivíduos ocupacionalmente expostos. A sanção aplicável para o caso é a cassação da Autorização de Operação, para o titular da instalação e, para o Supervisor de Proteção Radiológica, o cancelamento do certificado e impedimento da obtenção de novo certificado por até cinco anos”.
Também noticiado pelo BLOG, o “desaparecimento de duas ampolas com amostras de urânio enriquecido das instalações da INB, na unidade de Resende/RJ (julho/2023)”, segundo a CNEN, o caso aponta “ter sido a responsável pela descoberta do desaparecimento, após a conferência do material pela área de contabilidade e controle de material nuclear da Comissão. Foram abertas quatro exigências, para as quais a Indústria Nucleares do Brasil (INB) enviou um Plano de Ações, cujo cronograma foi acompanhado pela Comissão. Pior: ainda não foi descoberto o paradeiro do material, tampouco foi esclarecida a autoria do fato. Atualmente, a ocorrência está sob apuração policial. Como no caso acima, a falta de previsão na legislação vigente impede a aplicação de sanção para este tipo de não conformidade.
Igualmente noticiado com exclusividade pelo BLOG, está o furto de dois pacotes de radioisótopo Flúor-18 em Duque de Caxias/RJ, (agosto/2023). Segundo a CNEN, houve o imediato comunicado da ocorrência pelo licenciado, R2 Soluções em Radiofarmácia. “O furto se deu em circunstâncias de abordagem violenta durante o deslocamento de viaturas em que estavam os pacotes. Os embalados não foram localizados pelas autoridades policiais. Entretanto, a meia-vida da substância é muito baixa - inferior a duas horas -, não sendo esperadas consequências relevantes.”
CONSEQUÊNCIAS DANOSAS -
O TCU reitera que deve ser observado que os quatro casos citados acima poderiam ter sido tratados com as prescrições da Lei 14.222/2021, com o enquadramento como infrações leves, graves ou gravíssimas, conforme a avaliação da ANSN, e aplicação de sanções que vão de multa ao perdimento de equipamentos e materiais.
“Contudo, a demora na estruturação da Autoridade está concorrendo para um tratamento menos satisfatório em face das atuais exigências de níveis de segurança nuclear. Essa demora, vale lembrar, pode levar a uma ocorrência gravíssima, pois, como também já mencionado, em se tratando de segurança nuclear, basta que ocorra um único evento de natureza grave ou gravíssima para que haja consequências danosas sociais ou ambientais”.
JUIZO DE VALOR.
Com o objetivo de ilustrar o cenário da ação regulatória, requisitou-se à CNEN que fosse informada a quantidade de 'incidentes de segurança nuclear' ocorridos entre 2018 e 2023. A terminologia técnica adotada é 'eventos operacionais' ou apenas 'eventos', informou. Acrescentou que a classificação da gravidade foi feita de acordo com juízo de valor da coordenadora da área para fins de atendimento à requisição, sendo considerados eventos de alta ou média gravidade aqueles que produziram doses de radiação elevadas em trabalhadores ou pacientes, ou com o potencial de que não tivessem ficado restritos a um pequeno número de pessoas.
Portanto, observa o TCU, conclui-se que, atualmente, a CNEN se autorregula, uma vez que é o órgão regulador de segurança nuclear no Brasil, mas também opera instalações nucleares, como reatores, fábricas de combustível e de radiofármacos.
OUTRAS FALHAS -
Segundo o documento do TCU, a situação do licenciamento das instalações da própria CNEN, conforme marco regulatório está no seguinte estágio. Das onze instalações nucleares, apenas duas têm Autorização para Operação, o que corresponde a 18,18% (2/11) dessas instalações; das 25 instalações radioativas, onze estão licenciadas, ou seja, 44% (11/25) dessas instalações; e dos cinco depósitos de rejeitos, apenas um está licenciado, ou seja, 20% (1/5) desses depósitos. “Diante desse quadro, constata-se que a Lei 14.222/2021 apresenta avanços expressivos em relação ao atual marco legal, no tocante às prerrogativas atualmente conferidas a CNEN”, assinala o TCU.
Cabe ressaltar, destaca o TCU, que a criação de um órgão regulatório de segurança nuclear ganhou especial destaque a partir do acidente ocorrido com a usina nuclear de Fukushima, no Japão, em março de 2011. “Contudo, nem mesmo o efeito desse evento e tampouco as sinalizações dadas pelo TCU em suas deliberações se mostraram suficientes para o cumprimento das convenções que o Brasil é signatário”, conforme o documento.
VÁRIAS AUDITORIAS -
De longa data, o TCU tem abordado temas associados ao setor nuclear brasileiro, com auditorias de conformidade ou operacionais sobre aspectos estratégicos, além de análises no âmbito do Fiscobras (plano de fiscalização anual que engloba um conjunto de ações de controle do TCU com o objetivo de verificar o processo de execução de obras).
Entre esses trabalhos, destacam-se alguns processos: processo em que se investigou a gestão do fundo de descomissionamento das usinas nucleares Angra 1 e Angra 2, a fim de reunir informações e subsídios que permitam avaliar a gestão de seus recursos financeiros, bem como a possível ocorrência de prejuízos decorrentes da não adoção de mecanismos de proteção contra as desvalorizações cambiais do dólar norte-americano, ao qual estão atrelados os seus ativos; e com o objeto a identificar riscos acerca do gerenciamento seguro de rejeitos radiativos e de combustível nuclear usado; acompanhamento da implantação da Unidade de Armazenamento Complementar de Combustível Irradiado (UAS) e do empreendimento do Prédio de Monitoração do Centro de Gerenciamento de Rejeitos (PMR) , para as Usinas Nucleares de Angra 1 e 2, ainda pendente de deliberação, de relatoria do Ministro Aroldo Cedraz.
Tem mais: Auditoria de Conformidade sobre Contratos e Licitações do Ciclo do Combustível Nuclear, processo em que se buscou avaliar a conformidade da gestão da Indústrias Nucleares do Brasil S.A. (INB) na busca da autossuficiência nas etapas do Ciclo do Combustível Nuclear (CCN) , nome que se dá ao conjunto de processos industriais que transformam o minério urânio em combustível nuclear; entre outros envolvendo o acompanhamento das ações para viabilizar a retomada da Usina Termonuclear Angra 3.
Há a auditoria no processo licitatório objeto de edital relativo à contratação de obras e serviços de engenharia da chamada 'Linha Crítica' para igualmente à retomada da construção da unidade 3; auditoria com o objetivo de fiscalizar os principais contratos para fornecimento de equipamentos e prestação de serviços para a construção da usina, em especial da empresa Framatome.
A lista é extensa. Tem ainda a auditoria relativa à fiscalização e o acompanhamento da implantação do Repositório Nacional de Rejeitos Radiativos de Baixo e Médio Níveis de Radiação (RBMN), atualmente denominado Centro Tecnológico Nuclear e Ambiental (Centena) ,em andamento, que o BLOG divulgou com exclusividade.
(FONTE: Tribunal de Contas da União (TCU) – FOTO: CENTRAL NUCLEAR DE ANGRA - ABDAN) –
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