Na
primeira parte de meu artigo mencionei as considerações sobre as possibilidades
de utilização da energia do hidrogênio como base energética tem se
intensificado. Discussão acelerada por acontecimentos como a invasão da Ucrânia
pela Rússia, colocando entraves ao comércio de gás natural na Europa e, não
menos importante, a aceleração das mudanças climáticas, refletida em eventos do
clima extremos por todo o planeta, causando muita destruição, mortes e
prejuízos incalculáveis à humanidade. Nesta segunda parte, o foco é mais a
questão nuclear no Brasil, suas utilizações em usinas nucleares, por exemplo, e
a importância do protagonismo do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares,
da Comissão Nacional de Energia Nuclear (IPEN-CNEN). Como todo período de
transição tecnológica, dúvidas e afirmações superficiais surgem
costumeiramente. E no uso da tecnologia do hidrogênio e a tecnologia nuclear,
não seria diferente. Entretanto, temos que considerar fatores importantes, que
podem influenciar, significativa e positivamente, a evolução tecnológica em
questão, como ocorreu em outras épocas com outras tecnologias. Nada é estanque
e afirmações precipitadas só servem para confundir e mascarar a realidade.
Fato
é que as mudanças no clima planetário têm causa antropogênica, comprovada pela
ciência, e as ação para mitigar as emissões de gases de efeito estufa precisam
entrar em planejamentos energéticos nacionais de uma maneira mais efetiva em
relação aos últimos anos. Algumas afirmações prematuras ou precipitadas são
discutidas a seguir, sem, entretanto, esgotar o assunto.
O hidrogênio é muito
perigoso? Ora, esse medo ocorreu com os derivados do petróleo há 100 anos. A
ciência e a tecnologia aprenderam a manuseá-los de maneira segura ao longo do
tempo. A mesma curva de aprendizado se espera para o manuseio e armazenamento
seguros do hidrogênio. Já existem várias empresas que oferecem produtos seguros
nesta questão. Há um experimento interessante, onde dois carros são jogados em
alta velocidade contra uma parede, cujo respectivo vídeo está disponível na
internet. O carro a gasolina explode, causando mais danos que os causados no
carro a hidrogênio/célula a combustível, que não chega a explodir, mas sim
queimar num jato de chama.
A mineração para as baterias e as células a
combustível são sujas e a demanda de metais é insana? É possível também
processar uma mineração e uma metalurgia verdes, com técnicas ambientalmente
limpas. Além disso, a evolução tecnológica pode reduzir quantidades de metais
nobres, utilizando nanotecnologia, por exemplo, ou ainda ativando processos
eletroquímicos termicamente, reduzindo, ou mesmo eliminando a necessidade de
metais nobres.
A tecnologia é ainda muito cara? Sim, é verdade. Ainda! Assim como
ocorreu com a indústria automotiva, a taxa de redução de custos vai ser
acelerada com a produção em massa e o aumento do mercado específico (verde),
seguindo, inclusive, determinações legais em certos países ou regiões. Temos
exemplos na Europa, que, aliás, vai limitar, num futuro próximo, o
licenciamento de automóveis poluentes.
Não adianta nada fazer algo aqui, pois o
processo é global e outras nações não colaboram? Se pensarmos assim, o fim do
mundo está já anunciado. Temos que fazer nossa parte, repetimos, em que pese
nossa matriz elétrica bastante renovável, bem acima da média mundial. As ações
governamentais, como já mencionado, podem acelerar esta questão.
Todo o
processo é ineficiente? Em alguns casos sim, é verdade, sob o ponto de vista
termodinâmico, mas a eficiência do carro a combustão interna a gasolina, do
poço à roda, é de menos de 15%. E isso tudo para transportar o próprio veículo,
sendo os passageiros uma ínfima fração deste. O fato é que outra variável entra
em ação, o caráter ambiental, deixando a eficiência energética em segundo
plano. Importante salientar, também, que as tecnologias de hidrogênio vão
conviver, por um bom tempo, com as tradicionais. Essa transição pode ser
saudável para a economia, embora não o seja para as mudanças climáticas. Só o
tempo dirá em que taxa de crescimento a transição ocorrerá, pois são muitas as
variáveis envolvidas. Certo é que já está ocorrendo!
Neste momento, temos que
pontuar as possíveis contribuições da tecnologia nuclear para a chamada Economia
do Hidrogênio que podem ser divididas em três grandes eixos de atuação. O
primeiro trata da produção térmica do hidrogênio; o segundo diz respeito à
aplicação de técnicas nucleares tanto para a caracterização de materiais na
área como para produção de novos materiais (ou propriedades de materiais) via
radiação e o terceiro relaciona-se com a possiblidade de aproveitamento do
hidrogênio produzido nas instalações de produção de cloro nas usinas nucleares.
O cloro é utilizado na purificação biológica da água de refrigeração dos
reatores tipo PWR (Pressurized Water Reactor), principalmente.
Considerando
a produção de hidrogênio a altas temperaturas, a fonte térmica nuclear é
estável, limpa e possui grande capacidade produtiva. A combinação dessa fonte
de calor com a produção térmica de hidrogênio é hoje em dia uma base real de
estudo e pesquisa em todo o mundo. Os reatores nucleares do tipo HTGR (High
Temperature Gas-cooled Reactor), que utilizam o gás hélio como
refrigerante, são uma excelente opção para este fim. A temperatura máxima do
combustível pode atingir cerca de 1260ºC e a temperatura do gás de saída para o
sistema de transferência de calor é da ordem de 785ºC.
Com o aquecimento do
sistema de eletrólise por meio de um reator nuclear HTGR, com eletrólise a
850ºC, pode-se atingir até 50 % (rendimento total de energia consumida em
relação à energia gerada para produção de hidrogênio). Esse nível de rendimento
é superior ao da eletrólise a frio, na ordem de 27 % para eletrólise
alcalina. Este fato mostra o ganho de produção de hidrogênio que o aquecimento
induz no processo de eletrólise a quente, utilizando-se uma energia menos nobre
(térmica) que a elétrica, que pode vir de reatores nucleares.
Segundo estudos
já existentes, pode-se propor, a partir de construções específicas para uma
planta industrial, com base em aquecimento nuclear, um sistema HTGR associado
ao processo de eletrólise a quente, para produção de hidrogênio de alta pureza,
de forma eficiente e em grandes quantidades.
Vale lembrar que a energia térmica
de reatores nucleares também pode ser útil em combinação com eletrolisadores do
tipo SOEC (Solid oxide Electrolic Cell), derivadas da célula a
combustível tipo SOFC (Solid Oxide Fuel Cell), com eficiências da ordem
de 70 %. Por fim, ainda existe a possibilidade de aproveitamento do
hidrogênio produzido como subproduto da eletrólise da água do mar para produção
de hipoclorito de sódio, do sistema de cloração da água de refrigeração das
Centrais Nucleares, em geral.
Quanto às técnicas nucleares, lembro que a Agência
Internacional de Energia Atômica (AIEA) realizou, em 2008, a primeira reunião
em sua sede em Viena, Áustria, sobre o tema, entre outras, das quais
participei, abrangendo os três eixos citados. Este encontro gerou um Relatório
de distribuição restrita da IAEA, sob número 08CT03399.
Inúmeras técnicas
nucleares ou que utilizam radiação, como espectroscopia de aniquilação de pósitrons
(PAS-Positron Annihilation Spectroscopy), microscopia de varredura por
tunelamento (STM-Scanning Tunnelling Microscopy), microscopia eletrônica
(SEM e TEM) e ferramentas de Testes Não-Destrutivos, têm papel importante na
caracterização de materiais atualmente, que vão desde o nível atômico até a
escala macroscópica.
Algumas das melhores técnicas podem ser fornecidas por
aceleradores. Consequentemente, essas técnicas analíticas têm um grande impacto
nos estudos de materiais nanoestruturados, metais leves e ligas, e materiais
eletrônicos, entre outros. Uma importante ferramenta para caracterizar as
propriedades e desempenho dos materiais é a Análise por Feixe de Íons (IBA).
Outra é a radiação síncrotron que, assim como os feixes de nêutrons, íons e elétrons,
pode ser usada para a caracterização de materiais em tempo real. Com esta
tecnologia, podem ser enfrentados vários desafios tecnológicos e de
investigação específicos da utilização de determinados materiais em aplicações
relacionadas com a energia.
Uma outra aplicação importante para a área do
hidrogênio é a utilização de neutrografia para o estudo da distribuição de água
em células a combustível de baixa temperatura de operação, aproveitando o fato
de que nêutrons “enxergam” moléculas de água, diferentemente de raios-X. Estes
dados são muito importantes, pois o afogamento de canais das células são um
problema grave de perda de eficiência.
Além disso, pode-se aproveitar o
resultado da radiólise de soluções aquosas para produzir agentes fortemente redutores,
como elétrons solvatados e átomos de hidrogênio, para a produção de
nanoestruturas metálicas, estabilizadas por outros agentes, via redução
eletroquímica de metais de interesse em eletrocatálise para células a
combustível.
Nesta
área, o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN) da Comissão
nacional de Energia Nuclear (CNEN) produziu algumas patentes e publicações
científicas, utilizando radiações gama, beta e também feixe de nêutrons e de
elétrons, para a produção de catalisadores nanoestruturados e membranas
trocadoras de íons, para aplicações em células de baixa temperatura de
operação. Destaco mais adiante o papel de maior importância do IPEN, no campo
da tecnologia do hidrogênio, que deve ser democratizado para conhecimento e
reconhecimento de toda a sociedade.
Quanto ao aproveitamento do hidrogênio na
produção de hipoclorito de sódio, cito como exemplo o caso brasileiro.
Obviamente, este aproveitamento pode ser feito em qualquer instalação
semelhante. As usinas nucleares Angra 1 e Angra 2, operadas pela Eletronuclear,
utilizam a água do mar como fluido refrigerante no circuito terciário de refrigeração
(condensadores). O hipoclorito de sódio é adicionado a este fluido refrigerante
de forma a atuar como biocida para evitar o crescimento de bioincrustação (biofouling)
nos equipamentos e tubulações desse circuito terciário. O hipoclorito de sódio
é produzido continuamente, através de um sistema que realiza a eletrólise da
água do mar. O subproduto da produção do hipoclorito de sódio pela eletrólise é
o gás hidrogênio, o qual está sendo, atualmente, totalmente liberado para
atmosfera.
Dois sistemas de eletrólise operam nas centrais nucleares: Angra 1,
com produção de uma quantidade de hidrogênio; e outro em Angra 2, com outra produção
de hidrogênio. Somando os dois sistemas, Angra 1 e Angra 2, há um lançamento
contínuo de hidrogênio para a atmosfera da ordem de 140 Nm3/h.
O que isto representa? Que essas quantidades não são desprezíveis. E mais: caso
seja construída Angra 3, esse volume lançado para a atmosfera passa para 260 Nm3/h.
Uma célula a combustível do tipo PEM utiliza cerca de 0,66 Nm3/h de
hidrogênio por kW elétrico produzido. Logo, a disponibilidade de hidrogênio
produzido nas usinas permite obter uma potência de aproximadamente 210 kW.
Portanto, uma possível aplicação dos sistemas de produção de energia
distribuída seria a utilização da energia elétrica na vila residencial de Praia
Brava, resultante do aproveitamento do hidrogênio, via células PEM. Neste caso,
a energia elétrica gerada pelas células a combustível poderia complementar a
rede local e poderia, ainda, gerar água quente, por exemplo, para hospedagem.
Vimos
aqui que a chamada Economia do Hidrogênio não é um simples sonho. Pode ser
realidade. As perguntas que devemos fazer são apenas: “Quando?”, “Em que
penetração de mercado?” e “A que preço?”. Embora uma “Economia do Hidrogênio”
madura pressuponha soluções técnicas e econômicas para a produção, armazenagem
e utilização do hidrogênio, nada impede que soluções parciais para cada uma
destas áreas possam ser implementadas separadamente e a seu tempo.
A
demanda global de energia é crescente, enquanto a preocupação com o meio
ambiente e mudanças climáticas se tornam imperativas. Esta combinação única de
tendências cria inúmeras oportunidades para o hidrogênio entrar numa matriz
energética nacional como um armazenador complementar de energia elétrica.
No
Brasil, em particular, há necessidade de desenvolvimento de uma tecnologia
nacional, segundo o nosso mercado específico, que possui características
diferentes de outros países, como a utilização de outro vetor energético: o
etanol. A opção brasileira pelo hidrogênio obtido do etanol deveu-se a vários
fatores, que tornam esta escolha interessante. O etanol é um combustível
líquido, de fácil armazenamento e transporte, já havendo no Brasil toda a infraestrutura
para a sua produção, armazenamento e distribuição em todo o território
nacional. Além disso, o etanol possui outras características muito importantes,
como ser pouco tóxico e ser um biocombustível, portanto, renovável. É um insumo
rico em hidrogênio.
A aplicação estacionária, ou seja, a geração distribuída de
energia elétrica com células a combustível, representa um enorme potencial de
crescimento e uma oportunidade ímpar à indústria nacional, mesmo com empresas
estrangeiras concorrendo. Insere-se aí o fornecimento de energia elétrica a
regiões isoladas do país, aumentando a qualidade de vida destas comunidades.
Outro nicho de mercado promissor é a aplicação veicular, com os carros e
caminhões elétricos híbridos, ou mesmo os “puros”, movidos a células a
combustível/hidrogênio.
Toda mudança global vem acompanhada de oportunidades de
sucesso e crescimento. Com o binômio células a combustível/hidrogênio não será
diferente. Portanto, compete aos atores: governos, universidades, institutos de
pesquisa e empresas a tomada de decisões estratégicas, no momento certo, para
se destacarem a assumirem posições privilegiadas no futuro. Enfatizando, mais
uma vez para finalizar, os obstáculos à introdução da chamada Economia do
Hidrogênio não se configuram como dificuldades intransponíveis. O Brasil já
possui o seu roteiro para a Economia do Hidrogênio e um programa nacional de
pesquisa e desenvolvimento para esta tecnologia. Neste artigo, portanto, é
preciso destacar o papel do IPEN/CNEN em todo o processo de pesquisas e da economia
do hidrogênio que estamos tratando.
IPEN
– PROTAGONISMO -
A criação do Instituto de Pesquisas Energéticas e
Nucleares (IPEN0, da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), em 1956, está
relacionada diretamente à área de energia. Esta área do conhecimento permeia
vários Centros de Pesquisa do instituto até os dias de hoje. O Instituto vai
além da bancada, pois tem vocação para projetos de pesquisa e desenvolvimento
que levam a produtos, protótipos e/ou processos até escala piloto, favorecendo
assim a Inovação Tecnológica, como demonstra seu passado, no desenvolvimento da
tecnologia nuclear no país.
Os recursos orçamentários para custeio e
investimento das atividades do IPEN são repassados pela CNEN. Além dos recursos
advindos da CNEN, o IPEN capta recursos junto a Fundações de Apoio à Pesquisa,
Agências de Fomento, nacionais e internacionais, e por intermédio de parcerias
com empresas e outras instituições públicas.
A Instituição sente-se orgulhosa
de ter contribuído, de maneira significativa, para o desenvolvimento da Economia
do Hidrogênio no Brasil, com realizações cientificas e tecnológicas, no período
de 1998 até a atualidade. Em consequência destas realizações, o IPEN/CNEN
tornou-se referência nacional e internacional na área, como comprovam as parcerias
institucionais e projetos de inovação tecnológica estabelecidas com empresas
nacionais e estrangeiras como, por exemplo, Nissan e Shell.
Todas as atividades
científicas e tecnológicas contaram com a valiosa contribuição dos alunos, em
todos os níveis, desde a Iniciação Científica, até o Pós-doutoramento,
inseridos no Programa de Pós-Graduação IPEN/USP. Nesta área, especificamente, oito
cursos foram oferecidos na primeira década do século XXI, a saber: Introdução à
Tecnologia de Células a Combustível; Tópicos em Eletrocatálise para Células a
Combustível de Baixa Temperatura; Eletroquímica: Princípio e Aplicações; Engenharia
Eletroquímica e Reatores Eletroquímicos; Tópicos Avançados em Células a
Combustível: Materiais; Tópicos Avançados em Células a Combustível: Fenômenos
de Transporte; Projeto e Análise Técnico-Econômica para Células a Combustível e
Tecnologia do Hidrogênio para Aplicação em Células a Combustível. Um cálculo
aproximado, revela um total de 330 alunos (80 doutorandos, 130 mestrandos, 100
alunos de Iniciação Científica), além de 20 pós-doutorados, que obtiveram
formação relacionada à Economia do Hidrogênio no IPEN/CNEN na última década.
Como
consequência desta atuação exitosa, o IPEN/CNEN tem aumentado, recentemente, e
de maneira significativa, a qualidade de suas publicações em periódicos
internacionais, além de apresentar uma média anual de 280 publicações em
periódicos internacionais, 152 patentes depositadas, 25.000 itens no
Repositório Digital e Índice-h de 90. A localização de uma Incubadora de
empresas de caráter tecnológico no Campus do IPEN que, por sua vez, está dentro
da USP, ambos na maior cidade industrial do Brasil, cria um ambiente profícuo em
Ideias e Inovação Tecnológica, com características únicas.
Este
quadro atual é fruto de 65 anos de trabalho sério e comprometido com a melhoria
da qualidade de vida da população brasileira. Um futuro de sucesso do IPEN
depende, fortemente, de ações políticas de continuidade.
PERFIL -
MARCELO
LINARDI - Pesquisador Emérito do IPEN, no Centro de Células a Combustível e
Hidrogênio; graduado em Engenharia Química pela Universidade Estadual de
Campinas (1983), com mestrado em Ciências Nucleares pelo Instituto Tecnológico
de Aeronáutica (1987), doutorado em Engenharia Química - Universitat Karlsruhe
(1992) e Pós-Doc pela Universidade de Darmstadt, Alemanha em 1998; autor de
vários livros, entre eles, “O IPEN e a Economia do Hidrogênio”, Editora SENAI,
288p, São Paulo, 2022. Exemplares podem ser solicitados, gratuitamente, em superintendente@ipen.br
(Foto: Acervo pessoal) –
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