Nascida no bairro de Ramos, subúrbio do Rio, negra, a Relações Públicas (RP) Ana Paula Saint’Clair, conseguiu ingressar na Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), via concurso público, no ano 2000. Ana Paula enfrentou a máquina social preparada para triturar os sonhos dos mais pobres, até chegar a ser a primeira mulher na família a cursar uma faculdade. Além de RP, é formada em Direito, com mestrado em Políticas Públicas pelo PPED, da UFRJ. Coordenadora da Comunicação Social da CNEN há dois anos, ela fala sobre os mecanismos de informação numa área complexa como a nuclear, das conquistas e desafios, como os problemas que precisou enfrentar no passado: “Sofri preconceito racial no início da minha vida profissional e, mais tarde, assédio moral no ambiente de trabalho, uma vivência tremendamente traumatizante e injusta que estagnou minha carreira por muito tempo”. Hoje, ela tem certeza de que a qualificação profissional foi o seu maior ativo na carreira que abraçou. Ela também é destaque no blog em março, mês em que se homenageia às mulheres. Eis a entrevista:
BLOG: Como começou a sua participação na área nuclear?
ANA PAULA: A área nuclear era desconhecida para mim até 1998 quando prestei concurso para relações públicas da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Fui convocada e assumi o cargo em 2000.
BLOG: Onde trabalhava?
ANA PAULA: Era assessora de comunicação social do grupo de trabalho destacado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), localizado no Rio de Janeiro, enquanto cursava o último ano da faculdade de direito.
BLOG: O que acha que foi decisivo para cobrir/trabalhar na área nuclear? Conhecia, gostava?
ANA PAULA: Na verdade, quando, depois de formada em comunicação social e em busca de colocação profissional, comecei a notar atitudes racistas comigo em certas entrevistas de emprego, entendi que deveria planejar outra estratégia e aumentar minhas opções. Concomitantemente comecei a estudar para concurso, pois assim eu teria garantia de impessoalidade e não racismo. Em 1998 prestei concurso para a função de relações públicas da CNEN, enquanto era assessora de comunicação no IPEA. São 23 anos de CNEN completados esse ano.
BLOG: Naquela época, sem as ferramentas digitais, quais os maiores desafios técnicos? Ou você já começou na era digital? Pode traçar um paralelo?
ANA PAULA: No IPEA, fazíamos comunicação interna usando o quadro de avisos e newsletter impressa para os funcionários, já a assessoria de imprensa era por telefone ou fax! O que parece algo primitivo hoje. Quando entrei na CNEN já havia internet, contudo eu dividia o único computador com a colega de sala. Fazíamos clipping digital para um vasto mailing contendo público interno e externo, o contato com jornalistas e fornecedores tornou-se ágil e seguro. Havia o site, mas as redes sociais só surgiram posteriormente e na atualidade são os meios mais efetivos de comunicação direta com os diversos públicos. Apesar de toda a agilidade da comunicação por meios digitais não abolimos o bom e velho quadro de avisos.
BLOG: Sofreu algum preconceito ou vivenciou ação machista por ser mulher?
ANA PAULA: Como dito, sofri preconceito racial no início da minha vida profissional, e, mais tarde, assédio moral no ambiente de trabalho, uma vivência tremendamente traumatizante e injusta, que estagnou minha carreira por muito tempo. Mas machismo não sofri.
BLOG: Quais as maiores dificuldades? E desafios em termos de relacionamento, de divulgar bem a informação?
ANA PAULA: A divulgação da energia nuclear é desafiadora porque lidamos com o imaginário negativo da sociedade a esse respeito. Há um pré-conceito de que a energia nuclear só possui desvantagens e é extremamente perigosa. Ocorre que, como em tudo na vida, há um lado negativo – seu uso bélico, por exemplo, aliás, proibido no Brasil pela Constituição Federal – mas também um lado positivo, como o seu uso na medicina diagnóstica e no tratamento de doenças como o câncer, a produção de energia elétrica compondo a matriz energética nacional e o uso da radiação ionizante na preservação de bens culturais como quadros e livros, só para citar algumas aplicações.
BLOG: Outras questões?
ANA PAULA: Sim. Outro ponto com grande potencial para dificultar a melhor comunicação com o público é a linguagem, que pode ser excessivamente técnica. Nós, comunicadores, precisamos estudar os significados dos termos e contar com a colaboração dos pesquisadores e técnicos do setor, procurando “traduzi-los” de modo a tornar a informação compreensível para qualquer audiência.
BLOG: Desafios e dificuldades?
ANA PAULA: Eu vim de uma família humilde do subúrbio do Rio de Janeiro, formada predominantemente por mulheres que criaram seus filhos sozinhas ou com o apoio de outras mulheres. Sendo negra e mulher em uma sociedade sabidamente racista e machista, recebi do meu pai (aliás, o primeiro homem da família a ficar e criar seus filhos) uma orientação definitiva para a minha vida: só estudando muito você mudará sua condição e se tornará independente. E foi o que fiz, me tornando a primeira pessoa da família a ter nível superior. Foram duas faculdades na verdade, ambas em universidades públicas. Como ainda estávamos em uma época anterior às tão necessárias cotas, muitas vezes fui a única aluna negra da turma.
BLOG: O que fazia antes?
ANA PAULA: No início da minha vida profissional fui secretária e assistente administrativa em empresas privadas antes de atuar como assessora de comunicação. Esta foi uma fase de grandes desafios (como morar longe, continuar procurando colocação na minha área de formação, conciliar o curso de inglês, estudar para concurso enquanto trabalhava etc), havendo a necessidade de foco e força de vontade para realizar sonhos e conquistar espaço.
BLOG: Conte um pouco sobre as conquistas, os desafios e as dificuldades.
ANA PAULA: Considero que a minha vida profissional como relações públicas, minha formação original, começou para valer na CNEN. Foi uma grande conquista ser aprovada em um concurso público e logo de primeira. Mas no início não foi fácil, muito ao contrário. Eu não conhecia o setor, sua dinâmica e os profissionais que atuavam, e tinha a tarefa desafiadora de comunicar para diversos públicos sobre um assunto delicado, mas estratégico para o país. Como não se faz nada sozinho, contei como a colaboração de diversos profissionais que me orientaram, incentivaram e me fizeram críticas construtivas. Aliás, conto até hoje, pois o aprendizado continua.
BLOG: Como foi chegar à coordenação?
ANA PAULA: Atuei em outros setores na instituição, como a Diretoria de Pesquisa e Desenvolvimento e a Diretoria de Radioproteção e Segurança Nuclear. Posteriormente fui chefe do Setor de Comunicação do Instituto de Engenharia Nuclear (IEN), unidade da CNEN no Rio de Janeiro. Tudo isso me possibilitou ter uma visão mais abrangente da Comissão e do setor nuclear. E, após 23 anos de experiência na instituição, tive a oportunidade de ocupar o cargo de coordenadora de Comunicação Social. Entendo ser esta também uma grande conquista, considerando que apenas 3% das mulheres negras no Brasil ocupam cargo de gerência (dado de 2022).
BLOG: Hoje é mais fácil porque há comunicação digital ou não?
ANA PAULA: Muito mais fácil e muito mais seguro, no sentido de que há meios de checar as informações com rapidez e usando fontes confiáveis. Além disso, a comunicação hoje não conhece fronteiras.
BLOG: Como analisa o futuro da comunicação na área nuclear no Brasil?
ANA PAULA: O futuro já chegou. Hoje nós comunicamos, mas também temos que ouvir o nosso interlocutor. Não é mais uma via de mão única. A participação popular nas decisões e nas pautas que devemos abordar é uma realidade. As redes sociais aproximaram a instituição da sociedade e proporcionaram uma comunicação mais ágil e direta. Por outro lado, todo esse contexto aumenta nossa responsabilidade em enviar uma mensagem verdadeira, clara e confiável, já que é muito mais simples hoje checar o que se é dito.
PERFIL: Ana Paula Saint'Clair - Formada em Comunicação Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ), em 1993 e em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), em 2000. Pós-graduação em Direito Constitucional (Universidade do Sul
de Santa Catarina, 2009). Mestrado em políticas públicas (Programa de
Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (PPED)), pelo
Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atual
coordenadora de Comunicação Social da Comissão Nacional de Energia Nuclear
(CNEN). FOTO: Acervo pessoal – COLABORE
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