quarta-feira, 22 de julho de 2020

Olga Simbalista faz balanço do setor nuclear, da privatização da Eletrobras, às obras de Angra 3

Uma mineira de Belo Horizonte, presença feminina rara no comando da energia nuclear nacional e internacional, a engenheira elétrica Olga Simbalista, conversa pela segunda vez com o BLOG, sobre vários temas que compõe a história brasileira do setor: da privatização da Eletrobras, às obras de Angra 3, fazendo análise sobre os efeitos da pandemia do coronavírus (COVID-19) no Brasil e no mundo. Diretora da Associação Brasileira de Energia Nuclear (ABEN), nos últimos 21 anos; do Instituto Ilumina e do Board da American Nuclear Society, já recebeu doze prêmios por sua atuação na promoção dos direitos da mulher e, em 2014, e foi eleita Personalidade do Ano 2014 pela WEB da ONU. Com mestrado em engenharia nuclear, Olga Simbalista, comemora 41 anos de trabalho no setor. Recebeu também o Prêmio Full Energy de Personalidade do ano, em 2017, e, em 2018. Ela relembra as pressões norte-americanos, quando o Brasil assinou o acordo nuclear com a Alemanha, entre outras questões desafiadoras, como a solução para o armazenamento do lixo atômico. Eis a entrevista: 

BLOG: Há 45 anos o Brasil assinava o acordo nuclear com a Alemanha. O acordo previa a construção de oito usinas e a implementação de algumas empresas, que não foram adiante. Previa também o enriquecimento de urânio pelo método “Jet nozzle”, que a Alemanha sequer dominava. Qual a análise que a senhora faz hoje do acordo como um todo, o pacote? 

OLGA SIMBALISTA: O Acordo Brasil-Alemanha foi concebido em um contexto de um Brasil que apresentava crescimento econômico a taxas de dois dígitos e o consumo de eletricidade a taxas ainda maiores. O país era visto no exterior como uma economia pujante a exigir fontes de energia, tanto de petróleo, quanto de eletricidade, abundantes. O planejamento de então do setor elétrico, o Plano 90 da Eletrobrás indicava a necessidade de, no mínimo, quatro plantas nucleares da ordem de 1.000 MW. 

BLOG: Tinha a ver com a busca da soberania...

OLGA:  Sim. Tal cenário, associado ao projeto estratégico de soberania de Estado de dominar a tecnologia nuclear, embasaram a assinatura do acordo para a transferência de tecnologia de usinas nucleares e do ciclo completo do seu combustível. Primeiramente foi tentado junto aos Estados Unidos e França, mas só conseguiu ser concretizado com a Alemanha. A mídia mundial denominou-o de Acordo do Século. Os contratos para cada segmento/empresa vinham cobertos por linhas de crédito alemãs a taxas muito atrativas e de contratos de transferência de tecnologia. 

BLOG: E a crise do petróleo... 

OLGA: A implementação dos projetos foi iniciada, em praticamente todas as frentes, em ritmos normais, até que o mundo foi surpreendido pelo segundo choque do petróleo que sacudiu todos os países não produtores deste insumo, principalmente o Brasil, à época grande importador. As taxas de juros disparam, a dívida externa do país e o custo das importações de petróleo também e contratos de financiamento em moedas estrangeiras passaram a ser usados para cobrir estes rombos. Era o início da famosa década perdida de 1980, que acabou por impactar todas as frentes do Programa Nuclear Brasileiro. Os projetos que já se encontravam em fase final de implantação, como o PRONUCLEAR de formação de mão de obra altamente qualificada junto a Universidades brasileiras e empresas alemãs, a fábrica de equipamentos pesados NUCLEP, em Itaguaí, a Empresa de engenharia NUCLEN no Rio de Janeiro e Alemanha, a etapa de montagem dos elementos combustíveis na Fábrica de Elementos Combustíveis FEC, em Resende, o programa da Nuclebrás de prospecção e descoberta de reservas de urânio, a implantação Mina e da fábrica de concentrado de urânio/yellow kaque, em Poços de Caldas e a Nuclemon, já nacional, praticamente, não sofreram solução de continuidade. 

BLOG: Mas a usina de Angra 2, vinha sendo construída dentro do cronograma. 

OLGA: E já sofrera o impacto do questionamento da CNEN, no âmbito de seu licenciamento, com relação à necessidade de se construir estacas em suas fundações, resultando em paralisação por mais de dois anos e consequente aumento de custos diretos e financeiros, que, ao longo da década de 80, acabou resultando na extinção da Nuclebrás e no esfacelamento e/ou no atraso de vários projetos. Angra 2 foi paralisada e só retomada em 1997, quando da criação da Eletronuclear e concluída em 2001, a tempo de salvar o país dos cortes de eletricidade, no período de racionamento, então vivenciado. A recessão vivida pelo país, a exploração de novos potenciais hidrelétricos, principalmente na região Norte do país, bem como o aumento dos custos das nucleares, devido às taxas de juros e de câmbio, fizeram com que as usinas nucleares deixassem de ser competitivas em comparação com as plantas hidráulicas.

BLOG: Gostaria que falasse sobre o fracasso do processo de enriquecimento que estava no acordo. 

OLGA: No que se refere ao projeto de enriquecimento isotópico, pelo “jetnozzle”, ele se encontrava em estágio avançado de implantação na NUCLEI, em Resende, mas também foi paralisado por falta de recursos financeiros. Deve-se ressaltar que o Brasil negociara com a Alemanha o processo de enriquecimento pela ultracentrifugação, muito mais econômico e de implantação mais rápida, mas o sócio holandês da Alemanha no processo, dizem, que por pressão americana, não permitiu tal transferência. Na ocasião, a Alemanha dispunha do desenvolvimento de um processo próprio, em nível de demonstração, e propôs o seu desenvolvimento conjunto no Brasil, através de uma empresa, a NUCLEI, da qual foi, inclusive, sócia. Dispor de um parque de usinas, fazendo uso de urânio enriquecido e com um ciclo do combustível sem o enriquecimento, teria sido um contrassenso. 

BLOG: Fato é que gerou um atraso...

OLGA: Infelizmente, o Acordo não pode ser concluído como o previsto, pois o país como um todo foi muito fragilizado pela crise e levou quase duas décadas para se recuperar. Porém, muitas realizações podem ser elencadas, tendo sido criada uma massa crítica de extrema competência em praticamente todos os setores da tecnologia nuclear e que acabaram por irrigar vários Institutos de Pesquisas, empresas de engenharia nacional, bem como a indústria nacional, com programas de transferência de tecnologia e técnicas de controle e garantia de qualidade, além da transferência de algumas tecnologias para o então denominado Programa Paralelo, que conseguiu dominar a tão desejada tecnologia de enriquecimento pela ultracentrifugação e que hoje está implantada industrialmente nas instalações da antiga NULEI, junto à atual INB (Indústrias Nucleares do Brasil). A despeito de lacunas não preenchidas do Acordo, o país, ainda assim, conseguiu grandes ganhos. Este é o meu ponto de vista

BLOG: Naquela época, o acordo serviu como uma espécie de “libertação” (autonomia) do Brasil em relação aos Estados Unidos, que venderam Angra 1, mas não quiserem repassar o combustível, comprado depois da África do Sul. Coma a senhora analisa que o Brasil fez a compra de Angra 1 sem avaliar esses impactos? 

OLGA: A cronologia não foi bem assim, pois os Estados Unidos venderam Angra 1, ainda nos anos de 1970, incluindo o fornecimento do seu combustível, enriquecido em cerca de 3,5%. O Acordo com a República Federal da Alemanha só foi assinado depois disso e o Brasil, como mencionado no item anterior, tentou, primeiramente, um acordo com os Estados Unidos, mas sem sucesso, exatamente por já dispor de Angra 1, comprada sem transferência de tecnologia, por meio de um contrato “Turn Key”. Com a assinatura do Acordo alemão, o governo americano que pressionara, sem êxito, a Alemanha para não assinar, decretou o boicote ao fornecimento das recargas de Angra 1, que já possuía o núcleo inicial de fabricação Westinhouse, no Governo Jimmy Carter, em 1978. Para contornar o enorme problema, foi acordado com a Alemanha a fabricação das recargas de Angra 1, a despeito de ser um combustível um pouco diferente dos alemães e que, portanto, deveria ser desenvolvido e comissionado, tendo tudo ocorrido com sucesso e a montagem final das recargas realizas na fábrica de Resende. Mais um grande fruto do Acordo, na minha opinião. 

BLOG: Há um ditado popular que diz que se aprende com os erros. Quais os principais erros ou equívocos praticados pelo Brasil na época do acordo com a Alemanha? 

OLGA: Eu não classificaria como erros as ações de então, pois foram problemas eminentemente conjunturais, de origem externa ao país. Talvez a adoção do racionamento de combustíveis fósseis, desde o primeiro choque do petróleo, e o início do projeto de prospecção no mar, pela Petrobrás, tivessem levado a um desfecho menos traumático. No caso do setor nuclear, talvez, ter paralisado despesas com Angra 3, logo em seguida, e desviado recursos para Angra 2, bem como de outros projetos ainda no início, mas os tomadores de decisão, à época, não podiam prever que a crise fosse tão duradoura e tão profunda. 

BLOG: E os acertos? 

OLGA: Os acertos foram muitos, como também já descritos na primeira questão, que se tornou muito longa para que se entendesse a complexidade da problemática da etapa de enriquecimento isotópico e do por que dos acertos do Programa para o País. 

BLOG: Angra 3 foi comprada pelo acordo Brasil Alemanha e até hoje, por indefinição política e problemas de corrupção, segundo a operação Lava Jato (amplamente divulgados) a usina tem 62% de suas obras concluídas, mas ainda enfrenta muitos entraves, como a falta de recursos. A senhora acha que a usina deve ser concluída? Por quê? 

OLGA: Também, conforme descrito na primeira questão, Angra 3 foi paralisada por questões financeiras na década de 1980 e só teve autorização para sua retomada em 2010, com suas obras iniciadas em 2013 e, novamente, paralisada, em 2015, por questões de corrupção, envolvendo quatro de seu dirigentes e alguns gerentes de primeiro escalão. Estudos, envolvendo vários ministérios, empresas, bancos e consultorias, foram concluídos e indicam a viabilidades da conclusão do empreendimento por diversas razões de caráter técnico, energético, elétrico, estratégico e econômico-financeiro. 

BLOG: A Eletrobras acaba de aprovar a concessão de Adiantamento para Futuro Aumento de Capital (AFAC) para a Eletronuclear em 2020 e 2021, nos valores respectivos, de cerca de R$ 1.052 milhão e R$ 2.447 milhões, destinados a aceleração das providências para a retomada das obras de construção de Angra 3. Segundo a Eletrobras, os recursos já estavam previstos nos investimentos estimados no Plano Diretor de Negócios e Gestão para o período de 2020 e 2024. Qual a sua avaliação? 

OLGA: Os estudos governamentais que balizam a retomada do empreendimento sugerem o uso de financiamentos da holding Eletrobras para concluir as atividades anteriores à contratação de empresa de engenharia, construção e montagem, que deverá acontecer em 2023. Tais financiamentos da Eletrobras já se encontram aprovados por seu Conselho de Administração, conforme Fato Relevante publicado em 29 de junho de 2020. Os demais recursos deverão ser contratados junto a bancos, nacionais ou estrangeiros, ou até mesmo obtidos do contratado, que poderia ter como garantia parte da receita operacional de Angra 3. 

BLOG: Ouvimos a senhora mencionando recentemente sobre as perdas, caso a obra seja paralisada...

OLGA: A minha opinião pessoal é totalmente favorável à conclusão dessa planta, não só pelos aspectos mencionados no parágrafo anterior, mas também por considerar que o abandono do empreendimento resultaria em desembolsos antecipados, pela Eletronuclear, da ordem de R$ 12 bilhões, relativos a multas contratuais de liquidação antecipada de contratos de financiamento e de fornecimento de bens e serviços, desmobilização do canteiro de obras, renúncias fiscais, compensações socioambientais, dentre outras. O pagamento de tais cifras levaria a Eletronuclear à falência/extinção, com consequências também de contaminação da Eletrobras, por “cross default”.  A ausência da Eletronuclear do Programa Nuclear Brasileiro traria reflexos, devido ao seu peso específico e às suas externalidades, em outros segmentos. 

BLOG: Quais? 

OLGA: A produção de 2000 MW, na base do sistema, com o menor custo de despacho térmico, implicando em um aumento de tarifa com as saídas de Angra 1 e Angra 2; desativação de grande parte das atividades da CNEN nas atividades de licenciamento e segurança nuclear; extinção de, praticamente, 95% da demanda da INB, levando à sua insolvência; diminuição da demanda da Nuclep, com reflexos na sua rentabilidade/viabilidade; diminuição da demanda do programa de propulsão naval, diminuindo a competitividade da NUCLEP e da Amazul; grande diminuição na demanda de serviços, insumos e pesquisas de, praticamente, seis Institutos de pesquisas da CNEN, bem como de 14 Universidades que desenvolvem atividades diretamente relacionadas ao setor nuclear. E ainda, grande impacto nas atividades de salvaguardas, principalmente, no que se refere à ABACC (Agencia de controle argentina), com graves impactos no atual saudável relacionamento entre Brasil e Argentina; perda de massa crítica nas atividades de controle e garantia da qualidade, com possibilidade da inviabilização do Instituto Brasileiro Qualidade Nuclear e, finalmente, o mais importante na minha opinião; e perda de credibilidade da opção nuclear, como importante e estratégica fonte de energia limpa para o futuro da nação. 

BLOG: A própria Eletrobras, em investigação interna, apurou que houve corrupção e desvio de verbas públicas na gestão de Angra 3, em 2015/2016, quando presidia a Eletronuclear, o almirante Othon Luiz Pinheiro. A senhora acredita que um empreendimento do porte e da grandeza de Angra 3 precisaria de uma comissão para acompanhar a correção da aplicação do dinheiro público? Essa malversação do dinheiro público pode ter ocorrido por falta de maior fiscalização? 

OLGA: As investigações do Ministério Público levadas ao Judiciário, com o apoio da Eletronuclear, indicaram a ocorrência de irregularidades/corrupções, desde a autorização da retomada do empreendimento até o início de 2015. Esse processo vem sendo conduzido pelas autoridades competentes do Ministério Público e do Judiciário, com total suporte da Eletronuclear, Eletrobrás e do Ministério de Minas e Energia. Possivelmente, uma maior fiscalização, talvez, pudesse ter contribuído para uma melhor e correta aplicação do dinheiro público, mas não devemos nos esquecer que, à época, a prática de malversação estava passando pela Petrobrás e, neste contexto, talvez a Eletronuclear parecesse um subproduto que não levaria quer à curiosidade, nem às investigações em profundidade desde então realizadas. No entanto, o MP estava atento. 

BLOG: Voltando a Angra 3, a pandemia do coronavírus (COVID-19) poderá afetar investimentos na usina? O Brasil está sendo penalizado no exterior por conta da postura do governo em relação ao combate ao COVID-19. Como a senhora analisa esse problema? 

OLGA: A pandemia é algo que não estava no planejamento/previsões de ninguém e de nenhum País no nosso Planeta. Sabemos que suas consequências serão muito grandes em quase todos os setores, com perdas e prejuízos, mas não se consegue ainda quantificar sua profundidade e alcance. No entanto, dois fatores, ainda não quantificados, podem ter impacto em Angra 3. E são: a diminuição no consumo de eletricidade com reflexos para todo o setor elétrico, bem como no seu plano de expansão. Entretanto, dados recentes do Operador Nacional do Sistema (ONS) indicam uma retomada do consumo, a partir de maio e uma redução da ordem de apenas 5%, contra uma previsão inicial de até 20%. Outro fator seria a forte influência da variação da taxa cambial no orçamento da conclusão do empreendimento, já que cerca 35% deste são em moeda estrangeira, notadamente em Euro. Entretanto, a decisão do PPI já leva em consideração tais fatos. 

BLOG: O Brasil domina o ciclo do combustível desde 1988 e há alguns anos, com tecnologia da Marinha, enriquece urânio em Rezende, em unidade da Indústria Nucleares do Brasil (INB). Mas uma parte dessa operação ainda é feita no exterior. Porque permanece dependente nessa área? 

OLGA: A dependência de que parte destes serviços sejam realizadas no exterior ocorre porque o parque industrial da INB ainda não dispõe da totalidade das instalações necessárias para cobrir a demanda, mas, paulatinamente, novas cascatas de enriquecimento estão sendo implantadas para, no futuro atender toda a demanda, pois o mais importante, a tecnologia, já dominamos. BLOG: O Brasil planeja construir quatro usinas nucelares no Nordeste. Comunidades locais rejeitam a ideia. O que a senhora acha disso? O Nordeste precisa mesmo das usinas? Por quê? 

OLGA: O Plano Plurianual de Expansão 2030 da Eletrobras previa a instalação de até quatro novas usinas nucleares, além de Angra 3, até aquela data. Estudos realizados pela Eletronuclear, àquela ocasião, indicavam que as duas regiões candidatas a receber tais plantas seriam o Nordeste e o Sudeste. O ritmo de crescimento da demanda àquela ocasião, bem como a paralisação, por questões ambientais, dos aproveitamentos do rio Tapajós, tornava evidente a necessidade de tais usinas.

BLOG: Mas setores da sociedade civil têm se manifestado contra... 

OLGA: Com relação à opinião pública da microrregião nordestina candidata a receber tais usinas, nos dois últimos anos, foram realizadas várias iniciativas de fornecimento de informações às suas populações, contando com lideranças políticas de Pernambuco, da Academia de Engenharia, universidades e institutos de pesquisas, com resultados extremamente promissores, segundo levantamento de opinião já realizado. 

BLOG: Como a senhora analisa a situação brasileira em relação ao armazenamento do combustível usado e do lixo atômico produzido nas instalações brasileiras? A Eletronuclear está construindo a UAS (Unidade de Armazenamento a Seco) que deve ficar pronta em 2021.  O que acha do empreendimento. Terá capacidade para armazenar durante 25 anos. E depois? 

OLGA: Em relação ao armazenamento do combustível usado e dos resíduos de baixa e média atividades, o protocolo brasileiro está coberto por todas as medidas de proteção e de segurança, dentro dos padrões internacionais, certificados pela CNEN, bem como pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). A construção de unidades de armazenamento do combustível irradiado a seco é uma tecnologia muito eficiente e adotada na maioria dos países que fazem uso da geração núcleo elétrica, em particular nos EUA, em suas mais de 100 usinas nucleares em operação ou descomissionadas. Depois de suas vidas úteis este material poderá ser transportado para grandes depósitos a seco, como também já se faz em diversos outros locais com segurança. 

BLOG: Lixo atômico ainda é um desafio para o Brasil? Por quê? 

OLGA: Os resíduos radioativos de alta intensidade (combustível nuclear irradiado/usado) costumam ser questionados pelo público leigo e entidades ditas ambientalistas, devido ao grande tempo requerido para que deixem de emitir radiações que possam comprometer o ambiente, período este da ordem de mil anos. As instalações existentes para a sua guarda são feitas em locais profundos, que disponham de geologia estável e normalmente granítica, onde podem permanecer, se necessário, por milhares de anos, pois suas integridades seriam superiores às das grandes pirâmides do Egito, de longevidade e conservação inferiores. Porém, a construção de tais instalações, do ponto de vista econômico, só se torna realística, quando se dispõe de grades quantidades de material e se faz uso do reprocessamento do combustível usado. 

BLOG: O Brasil está atrasado em relação a construção do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB) para a produção de radioisótopos. Até a Argentina está mais adiantada. Por que estamos tão atrasados e ainda dependem0os da importação? Faltam recursos ou decisão política? 

OLGA: O Brasil já produz parte dos radioisótopos usados na medicina nuclear, principalmente em diversos Institutos de Pesquisas, principalmente os da CNEN, e até em alguns poucos hospitais, destacando-se como a maior produção aquela do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares - IPEN, porém grande parcela ainda é importada, mas deixará de sê-lo, quando o RMB, usando um projeto básico argentino, estiver operacional. O RMB está com seu detalhamento sendo realizado principalmente pela Amazul e está licenciando suas instalações em uma área próxima a ARAMAR, em Iperó, São Paulo. 

BLOG: O Brasil planeja construir seu primeiro submarino nuclear há 40 anos. O projeto está sendo desenvolvido pela Amazul e Nuclep. Por falta de verbas, também caminha em passos lentos. O que a senhora pode dizer sobre isso? 

OLGA: O programa do submarino nuclear não está no ritmo planejado originalmente, mas já apresenta enormes conquistas que podem ser vistas, em sua plenitude, no Centro Tecnológico da Marinha, em Iperó. 

BLOG: Quais? 

OLGA: Todas as etapas sensíveis do ciclo do combustíveis já implantadas e em operação, com tecnologia própria; o edifício do reator do protótipo em terra e o edifício da turbina do submarino nuclear em estágios avançados; diversos laboratórios tecnológicos de suporte em operação; oficinas de várias naturezas, com processos tecnológicos sofisticados; um grande edifício em condições de extrema limpeza para procedimentos que requeiram tal ambiente; um simulador do reator com operadores treinados, dentre outros. Ou seja, todo um conjunto de maravilhosas realizações que, infelizmente, são quase totalmente desconhecidas por nossa população. A Amazul, por meio de desenvolvimento de atividades sensíveis de engenharia e de mão de obra especializada, a Nuclep, por meio da fabricação de componentes pesados e outras empresas nacionais de engenharia e institutos de pesquisas fornecem um suporte importante ao projeto, mas o cerne das atividades sensíveis está em ARAMAR. 

BLOG: A senhora acompanha o desenvolvimento do quadro técnico da energia nuclear? Como está esse perfil tecnológico de pessoas?

OLGA: O quadro técnico do setor nuclear brasileiro, juntamente com o da Petrobrás, apresenta uma qualificação fantástica, em que pese os setores de geração nuclear e seu ciclo do combustível terem sofrido grandes perdas de pessoal altamente qualificado e treinado no exterior, devido às décadas de quase paralisação de sua expansão. Atualmente o setor dispõe de vários Centros de Pesquisas, principalmente os da CNEN, que também formam mestres e doutores em várias áreas de conhecimento do setor, já temos dois cursos de graduação em energia nuclear, um no Rio de Janeiro, com várias turmas formadas, e um em São Paulo que vai iniciar suas atividades já em 2021. Por outro lado, em 2013, foi criada a Amazonas Azul (Amazul), estatal que tem como principal atribuição deter e desenvolver conhecimentos sensíveis do setor, tendo, atualmente, uma força de trabalho de mais de 1.800 profissionais de elevado nível e uma diretoria específica de Gestão do Conhecimento para gestão estratégica do conhecimento tecnológico do setor. 

BLOG: O que acha do desmembramento da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN): execução, regulação e fiscalização separados? 

OLGA: A separação das atividades de regulação, fiscalização e licenciamento - típicas de uma agência reguladora - daquelas operacionais e, por isso, também sujeitas às mesmas regulações, fiscalizações e licenciamentos, é tendência quase mundial e o Brasil já se comprometeu, junto à AIEA a implementá-la há algum tempo. Propostas de projeto neste sentido já foram apresentadas, havendo agora uma em elaboração. Os primeiros passos nesta direção foram dados em 2019, com as retiradas da INB e da NUCLEP do controle empresarial da CNEN, passando-as para o Ministério de Minas e Energia (MME). 

BLOG: E da privatização da Eletrobras? 

OLGA: A privatização da Eletrobras foi anunciada pelo Ministério da Economia como uma forma de diminuição do déficit público. Na prática, o que se anuncia não é uma privatização propriamente dita, mas a venda, no mercado de ações, do seu controle acionário. É uma questão que divide muito os membros do setor, principalmente agora, no contexto pós pandemia, quando se espera uma participação mais intensa da União em setores estratégicos. 

BLOG: Tudo está definido neste sentido? 

OLGA: Esta venda do controle acionário da Eletrobras não deveria ser feita sem que se definam as seguintes questões: o futuro da questão tarifária da Itaipu Binacional, modificando ou não o Anexo C do Tratado entre o Brasil e o Paraguai, após 2023, quando se encerra o pagamento de suas dívidas com a Eletrobrás; o valor do seu sistema de transmissão, face à iminente implantação da tecnologia 5G, para a qual o uso de tal malha terá um valor hoje não contabilizado e provavelmente muito grande; e a diluição de custos não apropriados do setor nuclear aos atuais acionistas privados e minoritários da Eletrobras. 

BLOG: E quando a Nuclep? 

OLGA: Não tenho informações sobre as avaliações, mas, pessoalmente, creio que ela é estratégica para o país e que não seria conveniente vendê-la para um proprietário estrangeiro, mas precisaria fazer melhor avaliação. Em 1988, quando da extinção da Nuclebrás, pensou-se em privatizá-la, mas não me recordo dos motivos da não realização. 

BLOG: O que acha da parceria da iniciativa privada nas minas de urânio e em todo o setor mineral de material radioativo no Brasil? 

OLGA: Creio que é uma forma de viabilizar o melhor aproveitamento de nossas reservas, expandindo a prospecção e estudos geológicos, que se encontram paralisados desde o início dos anos de 1980 e contemplam apenas um terço do território nacional. Sei que a proposta está sendo estudada, inclusive do ponto de vista estratégico, mas desconheço a sua abrangência.  

BLOG: Como analisa o futuro da energia nuclear no Brasil? Será afetado pela pandemia do COVID-19? De que forma? 

OLGA: Mais cedo ou mais tarde, o Brasil vai precisar da energia nuclear em praticamente todas as suas formas e aplicações, inclusive da medicina nuclear.  As consequências da pandemia já foram abordadas na resposta à retomada de Angra 3, com relação aos riscos. Não podem ainda ser quantificadas em sua profundidade e abrangência.


9 comentários:

  1. Excelente entrevista digna de uma especialista como a jornalista Tânia Malheiros que cem esclarecer inúmeros pontos desconhecidos prla maioria da população. Parabéns.

    ResponderExcluir
  2. Parabéns pelo alto nível tanto das perguntas quanto das respostas.

    ResponderExcluir
  3. Parabéns pelo alto nível tanto das perguntas quanto das respostas.

    ResponderExcluir
  4. Essa entrevista e muito esclarecedora para o público que não conhece os meandros do programa Nuclear Brasileiro,a Dra.Olga ,sem dúvida é uma das maiores especialistas do setor. As autoridades Brasileiras deveriam prestigiar mais essas autoridades do setor Nuclear.Paravens pela entrevista.

    ResponderExcluir
  5. Excelente matéria com a Olga Simbalista!!!
    Parabéns a ambas pelo complexo tema!!!
    Show!!!

    ResponderExcluir
  6. Parabéns, Olga. Como sempre, com conhecimento, pleno domínio sobre o que se propõe falar, clareza e didática.

    ResponderExcluir
  7. Parabéns à Tânia jornalista e à Olga, a entrevistada. Matéria esclarecedora e muito oportuna. O setor precisa ser mais compreendido e Olga Simbalista tem se reafirmado como a grande divulgadora da área nuclear.

    ResponderExcluir
  8. Parabéns, Tânia, a você e à Olga Simbalista. Que matéria bem feita sobre esse tema difícil de ser entendido por leigos como eu. Vocês conseguiram tratar do assunto com muita clareza.

    ResponderExcluir
  9. É muito importante para mim, como trabalhador da Eletronuclear, conhecer melhor a história do programa nuclear brasileiro e a luta para nossa soberania nacional. Parabéns as duas grandes profissionais.

    ResponderExcluir

Em destaque

Bomba atômica! Pra quê? Brasil e Energia Nuclear - Editora Lacre

O livro “Bomba atômica! Pra quê? Brasil e Energia Nuclear”, da jornalista Tania Malheiros, em lançamento pela Editora Lacre, avança e apr...