O maior acidente radioativo em área civil do mundo, ocorrido com uma cápsula de
césio-137, em Goiânia (GO), completa 38 anos neste sábado (13/9), e vale à pena
relembrar como se deu a sua descoberta casual, por um físico natural
de Presidente Prudente, interior de São Paulo, que no dia 29 de setembro
daquele ano participava de comemoração familiar na cidade, como o Blog já
divulgou com exclusividade. O Blog refaz o caminho do acidente conforme relatos
preciosos do médico Walter Mendes Ferreira, que há poucos meses foi afastado do
cargo de coordenador da unidade de Goiânia, da Comissão Nacional de Energia
Nuclear (CNEN). Depois da reportagem do Blog, ele foi homenageado pelo governo
de Goiânia. A homenagem foi divulgada na página oficial da Comissão, que pela primeira vez reconheceu a dimensão da importância dele na história. Na
verdade, a atuação de Walter impediu que a tragédia com o césio-137 tivesse
desfecho muito pior.
Vamos aos fatos. Em 1987, aos 29 anos, ele atuava como
trabalhador autônomo, e comemorava o aniversário do pai quando foi acionado por
um amigo médico, intrigado com o caso de duas pessoas internadas na região, com
problemas e diagnóstico desconhecidos; diarreia, dor de cabeça, febre e queda
de cabelos. O médico soube do caso em jantar na semana anterior, com amigos do
setor da saúde. Walter, então, entrou no caso, sem ter a menor ideia do que se
tratava. No mesmo dia, descobriu a origem, o furto do cilindro com o césio-137,
no Instituto de Radioterapia em Goiânia, o local do ferro-velho para onde o
material fora levado, e tudo mais. Uma de suas decisões mais importantes,
impediu que bombeiros levassem o cilindro com o material radioativo para ser
atirado no Rio Capim Puba. Ao mesmo tempo, descobriu que um detector de
radiação estava na unidade da Nuclebras, na região, onde a estatal realizava
prospecção de urânio. As informações estão registradas em relatório da Agência
Internacional de Energia Atômica (AIEA).
DEPOIMENTO – EXCLUSIVO PUBLICADO -
Físico Walter Mendes Ferreira - Então coordenador do Centro Regional de Ciências
Nucleares do Centro Oeste, Unidade da Comissão Nacional de Energia Nuclear
(CNEN), em Goiás -
“Falo para você sobre o que ocorreu em Goiânia há 37
anos, um acidente com a violação de uma fonte de radioterapia com césio 137.
Minha história vinculada ao acidente é um caso interessante. Eu tinha 29
anos. Estava de passagem por Goiânia, quando fui chamado por um
amigo da Vigilância Sanitária para verificar se uma peça que estava na
vigilância sanitária para saber se era radioativa ou não. Esse amigo me dizia
que duas pessoas haviam levado esse material e colocado sobre uma cadeira na
Vigilância Sanitária e que a peça era o artefato que estava causando mal a toda
a família e que algumas pessoas estavam internadas no hospital de doenças tropicais.
O nome dele era Jadson de Araújo Pires, diretor da fundação estadual do meio
ambiente. Ele me relatou que no final de semana passado em uma reunião com
alguns amigos entre eles um médico do hospital de doenças tropicais um médico
lhe contou que havia onze pessoas internadas com vômito, febre, diarreia e
perda de cabelo e me perguntou se podia ser radiação. Eu disse a ele que isso
acontece com altíssimas doses de radiação. Eu não acreditava que em Goiás havia
material para esse tipo de coisa e assim foi feito.
E ele me disse que ia
manter contato com um médico, dr. Alonso Monteiro e me ligaria relatando o que
havia ocorrido e assim foi feito. Isso ocorreu no dia 29 de setembro de 1987,
por volta das 8h30 da manhã, quando o Dr. Alonso me ligou dizendo a mesma
coisa: que as pessoas estavam, com vômito, febre e diarreia e ele não conseguia
fazer o diagnóstico sobre de qual doença tropical era. E
me perguntou novamente se podia ser radiação. Eu disse que isso
seria um caso muito sério. E que não havia material em Goiás para isso.
E me
perguntou se eu poderia checar uma peça de 23 quilos que estava na vigilância
sanitária que havia sido deixada por uma senhora, a Dona Maria Gabriela e por
um dos catadores que estava com ela. Eu disse que poderia verificar sobre o
material radiativo, mas, no entanto, necessitaria de um equipamento especifico,
um detector para fazer a medida. Ele me disse então que havia um escritório de
prospecção de urânio em Goiânia da Nuclebras e se ele conseguisse o detector eu
poderia efetuar essa medida. Ele me disse que dois veterinários da
vigilância Sanitária me procurariam para ir até o escritório da Nuclebrás e
assim foi feito.
O que ocorreu é que a uns 70 a 80 metros de distância com o
detector ligado casualmente verifiquei que o detector a essa distância já dava
sinal da presença do material radioativo bem acima do back ground. Eu achei que
o detector estava com defeito. Retornamos ao escritório da Nuclebrás e pedimos
ao chefe que me emprestasse um outro detector que estivesse corretamente
calibrado. Retornei novamente ao local e com o detector ligado no mesmo
ponto ele saturou a medida. Tecnicamente isso significaria que os dois estavam
com defeito ou eu estava num campo de radiação muito intenso. Fiquei com
segunda opção. Nessa segunda vi que havia um caminhão de Bombeiros com três
integrantes que estavam saindo com essa peça envolta num saco plástico que,
segundo um deles, iriam jogar no Rio Capim Puba. Eu disse para eles, deixa esse
material porque acho que é radioativo e eu preciso saber de onde veio esse
material. Por sorte, os dois veterinários haviam anotado os endereços das duas
pessoas que haviam levado o cilindro até o local.
A Dona Maria
Gabriela e o catador de papel do ferro velho, que moravam na parte central da cidade
situado no setor norte. Eu dirigi até o local e me aproximando a um quarteirão
do ferro velho o detector já dava sinal de presença de material radioativo. Eu
fui diretamente ao ferro velho e perguntei a dois cantadores de papel, de onde
havia sido retirado aquele cilindro. E eles informaram terem retirado o
material de uma Clínica na Avenida Paranaíba com a avenida Tocantins, no
instituto de Radiologia. Coincidentemente eu conhecia o Instituto que era o
Instituto Goiano de Radioterapia. E perguntei pra eles se era o Instituto. Eles
disseram exatamente. Perguntei quem havia levado o material para eles? Nós
compramos de dois jovens da Rua 57.
E como eu conhecia os médicos do
hospital, perguntei a um deles o que havia acontecido com a Clínica e a fonte radiativa
de Césio. Fui informado por eles que uma fonte de cobalto havia sido
transferida para um outro local já aprovado pela Comissão Nacional de Energia
Nuclear e havia deixado a fonte de césio 137 no antigo Instituto. Eu disse que
provavelmente a sua fonte foi roubada. Eles disseram que era impossível. Fomos
lá e fizemos uma monitoração e verificamos que não havia rastro de nenhum
material radiativo e que o material havia sido roubado. Fiz contato com o
secretário de saúde, avisei que era gravíssimo e perguntei se havia algum
prospecto sobre a fonte de Césio, que havia sido importada em 1971.
Me
perguntaram se eu tinha contato com o pessoal do Comissão Nacional de energia
nuclear. O Dr. José Júlio Rosental, diretor da CNEN foi avisado e foram tomadas
as primeiras providências. No Palácio das Esmeradas, avisamos às autoridades
sobre a situação gravíssima. Foi decidido que todos as pessoas contaminadas
seriam levadas para o antigo estádio olímpico. Voltamos ao ferro velho e
evacuamos o local. Havia ainda um ferro velho dois, que também foi evacuado.
Nesse ferro velho dois morava a menina Leide com a família. Quase todo o
material havia ficado com a própria família. Tudo estava contaminado. O
Dr. Rosental chegou a Goiânia às 00:30 do dia 30 de setembro de 1987 e a
Comissão passou a assumir todas as ações e responsabilidade pelo
acidente.”
MEMÓRIA DO ACIDENTE -
A história que chocou a opinião pública
não pode ser esquecida. Uma cápsula de césio-137 – substância radioativa
componente de um aparelho usado no tratamento de câncer, de propriedade do
Instituto Goiano de Radioterapia (IGR), foi deixada na antiga sede do já
desativado instituto. De acordo com as notícias da época, no dia 13 de setembro
de 1987, os catadores de papel Wagner Motta Pereira e Roberto Santos Alves
entraram no local, retiraram o aparelho, abriram algumas partes e venderam uma
delas, a que continha a cápsula com o césio-137, para Devair Alves Ferreira,
dono de um ferro-velho. Ao arrombar a cápsula, a golpes de marreta, Devair
liberou o césio, um pó brilhante, parecido com purpurina.
A cápsula com o
césio 137 passou de mão em mão, em várias casas de família. Por fim,
foi levada de ônibus à Vigilância Sanitária por Maria Gabriela Ferreira, mulher
de Devair. Ela suspeitou que os problemas de saúde da sua família tivessem
alguma relação com o equipamento. O então presidente da República, José Sarney,
mandou prender os culpados pelo acidente e visitou dez pessoas contaminadas,
internadas no Hospital Geral do Instituto Nacional de Assistência Médica da
Previdência Social (Inamps) em Goiânia. O diretor-geral da Polícia Federal,
Romeu Tuma, anunciou a abertura de inquérito.
O presidente da CNEN, Rex Nazaré,
admitiu a necessidade de rever as normas de licenciamento e fiscalização de
instituições de Medicina Nuclear o país. O ferro-velho e as moradias dos
pacientes mais contaminados foram demolidos. O Exército deslocou pessoas para
região. Funcionários da CNEN ainda sem saber a dimensão do acidente, não
tomaram precauções de segurança ao medirem a radiação: usavam calça jeans,
tênis e sapatos. Os médicos Orlando Alves Teixeira, Criseide Castro Dourado e
Carlos Bezzerril, sócios-proprietários do Instituto de Radioterapia; e o
responsável técnico do instituto, físico hospitalar Flamarion Barbosa Coulart,
foram indiciados pela Polícia Federal (PF). Na CNEN, só houve um indiciado: o
chefe do Departamento de Instalações Nucleares e Materiais Nucleares, físico
José Rosental.
Mais tarde, a Procuradora da República solicitou a exclusão de
Rosental do caso e a Justiça acolheu o pedido. Enquanto a CNEN afirmava que o
caso estava sob controle, a cada dia apareciam outros focos de
contaminação. No dia 23 de outubro de 1987 ocorreram as duas primeiras
mortes. A menina Leide das Neves Ferreira, de 6 anos, filha de Ivo Alves
Ferreira e sobrinha de Devair, foi uma das quatro vítimas fatais. Com as mãos
contaminadas, Leide havia comido um pedaço de pão. Ela teve ulcerações na
língua, boca e garganta, e lesões internas. A segunda vítima foi a tia da
menina e mulher de Devair, Maria Gabriela, de 38 anos. Ambas morreram no
Hospital Naval Marcilio Dias, no Rio de Janeiro, onde foram internadas com
outros contaminados.
No dia 27 de outubro daquele ano morreu a
terceira vítima: Israel Batista dos Santos de 22 anos, que trabalhava no
ferro-velho e ajudara Devair a abrir o aparelho. No dia seguinte, morreu o
empregado do ferro-velho Admilson Alves de Souza, de 18 anos. O catador de
papel Roberto Santos Alves, de 21 anos, sobreviveu, mas teve o antebraço
amputado por causa das lesões provocadas pela contaminação. O medo da
contaminação levou a uma atitude violenta os moradores da vizinhança do
Cemitério-Parque, em Goiânia, onde a menina Leide foi sepultada. Eles atiraram
pedras e pedaços de cruzes de concreto contra o cortejo, em protesto pela
escolha do local para enterrar as vítimas da contaminação radioativa.
O
presidente da CNEN, Rex Nazaré Alves culpou os donos da clínica, que não teriam
comunicado à Comissão a desativação do aparelho radiológico. Os donos, por sua
vez, culparam os catadores de papel e a própria CNEN, que deixou de fiscalizar
o equipamento na antiga sede do instituto. Cerca de 112 mil pessoas que
temiam estar contaminadas foram examinadas durante dois meses no Estádio
Olímpico de Goiânia. Para atender às vítimas do acidente, o governo de Goiás
criou a Fundação Leide das Neves. Segundo a médica Maria Paula Curado, que
presidiu a Fundação naquela época, 244 pessoas estavam realmente contaminadas e
50 delas tiveram que receber tratamento hospitalar. Entre as 50 pessoas, 28
tiveram lesões e queimaduras causadas pela radiação.
Desse grupo, 10
pacientes foram submetidos a cirurgias plásticas reparadoras, das quais oito
sofreram síndrome aguda da radiação, depressão da medula, hemorragias e
distúrbios de comportamento. No grupo de pessoas mais graves, cinco
pessoas contraíram câncer e duas estavam em tratamento, naquela época. “Mas não
existe um exame sequer capaz de provar que o câncer foi provocado pelo
acidente”, avisava a médica. Devair morreu em maio de 1994 de insuficiência
renal e hepática, conforme atestado médico.
LIXO RADIOATIVO -
Além de
famílias destroçadas e outras que lutam na Justiça para serem indenizadas, o
acidente deixou um grande problema para o futuro: seis mil toneladas de
rejeitos radioativos armazenados no depósito em Goiânia com atividade
radioativa por pelo menos 300 anos. Nesse total, estão 1.343 caixas metálicas;
4223 tambores de 200 litros; 10 contêineres marítimos; e oito recipientes de
concreto.
FOTO: CNEN – ARQUIVOS – BLOG -
Leia no BLOG, em 16/9/2021:
"Acidente com cápsula de césio-137 em Goiânia faz 34 anos. Foi batismo de
fogo, deixou mortos, medo e seis mil toneladas de lixo radioativo”; em
28/09/2021: “Acidente com césio-137 em Goiânia, 34 anos depois”, por Célio
Bermann.
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