"Tenho muito apreço a técnicos em contabilidade, também a advogados, como também a delegados de polícia. Entretanto, estas prerrogativas que estão presentes na formação acadêmica e exercício profissional do atual Ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira de Oliveira, não o qualificam para o cargo que exige, ao menos, um mínimo conhecimento técnico.
Esta não é uma situação nova, se examinarmos as qualificações dos ministros que se sucederam no cargo nos últimos 25 anos, e suas manifestações por vezes desprovidas de lógica, sensatez, tecnicamente infundadas, e que foram emitidas sem o necessário amparo de assessores qualificados.
Foi o que aconteceu no último dia 17 de abril quando, por ocasião do “Fórum Distribuição de qualidade para a inclusão e transição energético”, evento realizado pela Editora Globo em parceria com a Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (ABRADEE), o ministro Alexandre Silveira propôs a substituição dos grupos geradores a óleo diesel que alimentam as comunidades isoladas na Amazônia por pequenos reatores nucleares.
Vamos aos fatos!
Os também chamados Pequenos Reatores Modulares -PRMs (Small Modular Reactors na língua inglesa ou SMRs) são pequenas usinas de geração que variam de 50 MWe a 300 MWe, utilizando para a produção de calor a fissão nuclear, a exemplo das usinas de maior porte (1.000 MWe ou mais).
Os PRMs são de diversas tecnologias, com combustíveis nucleares específicos e refrigeração também diversificada: PRM resfriado a Água; PRM resfriado a Água Leve; PRM resfriado a Gás de Alta Temperatura, PRM de Espectro de Nêutrons Rápidos resfriado com Metal Líquido, PRM a Sal Fundido (IAEA, 2022). Existem ainda os Micro-reatores Nucleares com potência de 1 MWe a 20 MWe que estão ainda em fase de testes. Um exemplo desta possibilidade é o micro-reator eVinci com potência de 5 MWe que está sendo desenvolvido pela norte-americana Westinghouse.
Talvez o ministro esteja ansioso em conhecer em sua próxima viagem à China, já marcada em sua agenda de compromissos, o pequeno reator desenvolvido pela Corporação Nacional de Energia Nuclear da China, o Linglong One com capacidade de gerar 125 MWe. Ou talvez o pequeno reator desenvolvido pela empresa americana NuScale Power, com capacidade de geração de energia de 60 MWe por unidade.
Sem mencionar os esforços da empresa russa Rosatom, a primeira empresa a se dedicar ao desenvolvimento de PRMs, que anunciou planos de desenvolver reatores em terra chamados de RITM-200N, em Yakutia, extremo leste da Rússia. As obras devem começar em meados de 2024 e o comissionamento está previsto para 2027. Vale assinalar que será o primeiro pequeno reator modular em terra, uma vez que os três pequenos reatores em operação, do modelo KLT-40S de 35 MWe flutuam acondicionados em barcos.
O problema é que nenhum desses PRMs poderá ser utilizado nas comunidades isoladas da Amazônia para substituir os grupos geradores a diesel. Isto por diversos motivos.
O primeiro motivo se deve à escala dos sistemas isolados que deverão ser atendidos. Conforme o documento “Planejamento do Atendimento aos Sistemas Isolados” elaborado pela EPE para o Ciclo 2023, existem no Brasil um total de 196 localidades isoladas. O consumo nessas localidades é baixo e representa menos de 1% da carga total do país.
A demanda por energia dessas regiões é suprida, principalmente, por pequenos grupos geradores movidos a óleo diesel. A maior parte dos Sistemas Isolados (SISOL) está na região Norte, nos estados do Amazonas (97 localidades com 1,786 milhão de hab.); Roraima (58 localidades com 636,7 mil hab.); Pará (17 localidades com 394,2 mil hab.); Acre (7 localidades com 214,5 mil hab.); Amapá (1 localidade com 27,5 mil hab.); e Rondônia (13 localidades com 11 mil hab.). Temos, portanto, segundo a EPE (2023), um total na região Amazônica de 193 localidades isoladas, com uma população estimada de 3,070 milhões.
A questão é que do total de 193 localidades isoladas, apenas uma poderia receber as PRMs que atualmente alcançaram no mundo a etapa de operação. Tomando como referência o pequeno reator desenvolvido pela empresa americana NuScale Power, com capacidade de 60.000 kWe, um exame da demanda de eletricidade requerida em cada um dos 193 sistemas isolados amazônicos permite afirmar que apenas Boa Vista, capital de Roraima, poderia se servir de 5 módulos do NuScale, ou 3 módulos do Linglong One para atender sua demanda de 265.360 kWe.
O quadro real é que 81 sistemas isolados (ou 42% do total) têm demanda inferior a 1.000 kWe, o que significa que nem os futuristas micro-reatores nucleares de potência de 1 MWe poderão ser instalados nestas localidades. Ainda, considerando o protótipo eVinci da Westinghouse.com potência prevista de 5 MWe. apenas 55 sistemas isolados amazônicos (ou 28% do total) poderiam se servir deste micro-reator para atender a demanda. Resta aguardar que este protótipo ultrapasse todas as etapas de licenciamento nos Estados Unidos para ser possível sua utilização aqui. Em conclusão, dentre os sistemas isolados na Amazônia, apenas Boa Vista seria uma possível localidade para receber um PRM.
O ministro Alexandre Silveira não tinha esse conhecimento, ao bradar por pequenas centrais nucleares no evento aqui citado? Evidenciando a captura a que está se submetendo, ao vigoroso lobby nuclear que está presente no atual governo, repetindo ad nauseam as pretensas vantagens do nuclear em reduzir as emissões de gases de efeito estufa devido à queima do óleo diesel na geração de eletricidade nos sistemas isolados amazônicos.
Este é justamente o segundo motivo, que se refere à questão ambiental. Cálculos da EPE (2023) estimam em 2,43 milhões de toneladas de CO2eq/ano as emissões decorrentes da queima de combustíveis fósseis (óleo diesel e gás natural) pelos sistemas isolados. Entretanto esta quantidade representa apenas 0,145% do total de emissões verificadas no país no ano de 2020, de cerca de 1.675,76 milhões de toneladas de CO2eq/ano.
Em realidade, trata-se de super valorizar as emissões dos sistemas isolados para apresentar a alternativa nuclear como a solução urgente para o país que irá receber a COP 30 em 2025. Não que não seja meritório buscar eliminar as emissões de gases de efeito estufa, mas isso pode ser facilmente alcançado aproveitando as diversas culturas de oleoginosas na região (andiroba, babaçu, óleo de palma, buriti, tucumã, entre outras) para a produção do biodiesel.
O terceiro motivo diz respeito à falsa ideia de que os pequenos reatores nucleares, devido ao seu tamanho reduzido, diminuem as quantidades de rejeitos radioativos. A esse respeito, Niágara Rodrigues e Francisco Raeder (2023) citam o artigo ”Nuclear waste from small modular reactors”, de Lindsay M. Krall, Allison M. Macfarlane e Rodney C. Ewing, publicado em 2022 nos anais da National Academy of Sciences dos Estados Unidos. Os autores realizaram uma comparação detalhada de três projetos distintos de PRM – resfriados a água, sal fundido e sódio e descobriram que os pequenos reatores nucleares produziriam de duas a trinta vezes mais resíduos radioativos com necessidade de gerenciamento e descarte por unidade de energia do que usinas nucleares convencionais.
Além disso, o combustível usado no PRM exigiria novas abordagens para avaliar a criticidade durante o armazenamento e descarte. A esse respeito, há que se considerar que o monitoramento e fiscalização das atividades nucleares no país permanece extremamente precário, mesmo após a criação em 2021 da ANSN-Autoridade Nacional de Segurança Nuclear, que ainda não foi integralmente constituída. Por sua vez, o quarto motivo é de cunho econômico pois o valor da Conta de Consumo de Combustível (CCC), que “todos nós consumidores de eletricidade temos que pagar” pois é um dos encargos embutidos na conta de luz, e que se constitui num subsídio para assegurar que os 3 milhões de cidadãos brasileiros que vivem nas localidades isoladas paguem o mesmo valor da conta de luz que os demais consumidores servidos pelo Sistema Interligado Nacional. De fato, o valor anual é bastante alto, da ordem de R$ 11,570 bilhões no ano de 2023 (CCEE, 2024).
Todavia, a CCC é apenas um dos 10 encargos presentes nas contas de luz. Ao todo, os encargos representam um acréscimo de 16% nas contas e se constituem em benefícios concedidos pelo governo a empresas e setores da população com o objetivo de diminuir o preço da energia e incentivar políticas no setor. Nesse sentido, as pequenas centrais nucleares são apresentadas como forma de eliminar o encargo da CCC, produzindo energia elétrica a um custo que chega a ser três a cinco vezes mais caro que a energia eólica, a solar, a que vem das hidrelétricas, e da biomassa.
Em suma, a proposição de substituição da geração à óleo diesel nas comunidades isoladas na Amazônia por Pequenas Centrais Nucleares com o objetivo de redução das emissões é absolutamente descabida. Primeiro porque os Pequenos reatores modulares (SMRs na sigla em inglês) disponíveis hoje no mercado internacional, possuem a potência que varia entre 50.000 kW e 300.000 kW, enquanto as cerca de 196 localidades isoladas possuem demandas de 5 kW a 500 kW em sua grande maioria. E segundo, porque resultará na disseminação do lixo nuclear que será produzido no bioma amazônico".
CÉLIO BERMANN - Doutor em Engenharia Mecânica na área de Planejamento de Sistemas Energéticos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em Engenharia de Produção na área de Planejamento Urbano e Regional pela COPPE/UFRJ e professor associado do Instituto de Energia e Ambiente da USP. AUTOR RESPONSÁVEL PELO ARTIGO EXCLUSIVO. EM CASO DE REPRODUÇÃO, FAVOR CITAR A FONTE: ESTE BLOG.
CÉLIO BERMANN É UM DOS MAIS RESPEITADOS ESTUDIOSOS DO ASSUNTO, COM TRÊS DÉCADAS DE PESQUISAS DE CAMPO.
O BLOG TENTA INFORMAÇÕES DO MME DESDE A SEMANA PASSADA SOBRE AS DECLARAÇÕES DO MINISTRO, EM EVENTO, DIVULGADAS PELA IMPRENSA.
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