sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Acidente radioativo em Goiânia com césio-137 faz 37 anos. Físico paulista autônomo descobriu por acaso

 


O maior acidente radioativo em área civil do mundo, ocorrido com uma cápsula de césio-137, em Goiânia (GO), completa 37 anos nesta sexta-feira (13/9), e vale à pena lembrar como se deu a sua descoberta casual,  por um físico natural de Presidente Prudente, interior de São Paulo, que no dia 29 de setembro daquele ano participava de comemoração familiar na cidade. Aos 29 anos, Walter Mendes Ferreira, na época, trabalhador autônomo, comemorava o aniversário do pai quando foi acionado por um amigo médico, intrigado com o caso de duas pessoas internadas na região, com problemas e diagnóstico desconhecidos; diarreia, dor de cabeça, febre e queda de cabelos. O médico soube do caso em jantar na semana anterior, com amigos do setor da saúde. Walter, então, entrou no caso, sem ter a menor ideia do que se tratava. No mesmo dia, descobriu a origem, o furto do cilindro com o césio-137, no Instituto de Radioterapia em Goiânia, o local do ferro-velho para onde o material fora levado, e tudo mais. Uma de suas decisões mais importantes, impediu que bombeiros levassem o cilindro com o material radioativo para ser atirado no Rio Capim Puba. Ao mesmo tempo, descobriu que um detector de radiação estava na unidade da Nuclebras, na região, onde a estatal realizava prospecção de urânio. As informações estão registradas em relatório da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). 


DEPOIMENTO – EXCLUSIVO -  

Físico Walter Mendes Ferreira  - Coordenador do Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro Oeste, Unidade da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), em Goiás - 

“Falo para você sobre o que ocorreu em Goiânia há 37 anos, um acidente com a violação de uma fonte de radioterapia com césio 137. Minha história vinculada ao acidente é um caso interessante. Eu tinha 29 anos.  Estava de passagem por Goiânia, quando fui chamado por um amigo da Vigilância Sanitária para verificar se uma peça que estava na vigilância sanitária para saber se era radioativa ou não. Esse amigo me dizia que duas pessoas haviam levado esse material e colocado sobre uma cadeira na Vigilância Sanitária e que a peça era o artefato que estava causando mal a toda a família e que algumas pessoas estavam internadas no hospital de doenças tropicais. 

O nome dele era Jadson de Araújo Pires, diretor da fundação estadual do meio ambiente. Ele me relatou que no final de semana passado em uma reunião com alguns amigos entre eles um médico do hospital de doenças tropicais um médico lhe contou que havia onze pessoas internadas com vômito, febre, diarreia e perda de cabelo e me perguntou se podia ser radiação. Eu disse a ele que isso acontece com altíssimas doses de radiação . Eu não acreditava que em Goiás havia material para esse tipo de coisa e assim foi feito. E ele me disse que ia manter contato com um médico, dr. Alonso Monteiro e me ligaria relatando o que havia ocorrido e assim foi feito. 

Isso ocorreu no dia 29 de setembro de 1987, por volta das 8h30 da manhã, quando o Dr. Alonso me ligou dizendo a mesma coisa: que as pessoas estavam, com vômito, febre e diarreia e ele não conseguia fazer o diagnóstico sobre de qual doença tropical era.  E me perguntou novamente se podia ser radiação.  Eu disse que isso seria um caso muito sério. E que não havia material em Goiás para isso. E me perguntou se eu poderia checar uma peça de 23 quilos que estava na vigilância sanitária que havia sido deixada por uma senhora, a Dona Maria Gabriela e por um dos catadores que estava com ela. Eu disse que poderia verificar sobre o material radiativo, mas, no entanto, necessitaria de um equipamento especifico, um detector para fazer a medida. Ele me disse então que havia um escritório de prospecção de urânio em Goiânia da Nuclebras e se ele conseguisse o detector eu poderia efetuar essa medida.  

Ele me disse que dois veterinários da vigilância Sanitária me procurariam para ir até o escritório da Nuclebrás e assim foi feito. O que ocorreu é que a uns 70 a 80 metros de distância com o detector ligado casualmente verifiquei que o detector a essa distância já dava sinal da presença do material radioativo bem acima do back ground. Eu achei que o detector estava com defeito. Retornamos ao escritório da Nuclebrás e pedimos ao chefe que me emprestasse um outro detector que estivesse corretamente calibrado .  Retornei novamente ao local e com o detector ligado no mesmo ponto ele saturou a medida. Tecnicamente isso significaria que os dois estavam com defeito ou eu estava num campo de radiação muito intenso. 

Fiquei com segunda opção. Nessa segunda vi que havia um caminhão de Bombeiros com três integrantes que estavam saindo com essa peça envolta num saco plástico que, segundo um deles, iriam jogar no Rio Capim Puba. Eu disse para eles, deixa esse material porque acho que é radioativo e eu preciso saber de onde veio esse material. Por sorte, os dois veterinários haviam anotado os endereços das duas pessoas que haviam levado o cilindro até o local. 

 A Dona Maria Gabriela e o catador de papel do ferro velho, que moravam na parte central da cidade situado no setor norte. Eu dirigi até o local e me aproximando a um quarteirão do ferro velho o detector já dava sinal de presença de material radioativo. Eu fui diretamente ao ferro velho e perguntei a dois cantadores de papel, de onde havia sido retirado aquele cilindro. E eles informaram terem retirado o material de uma Clínica na Avenida Paranaíba com a avenida Tocantins, no instituto de Radiologia. Coincidentemente eu conhecia o Instituto que era o Instituto Goiano de Radioterapia. E perguntei pra eles se era o Instituto. Eles disseram exatamente. Perguntei quem havia levado o material para eles? Nós compramos de dois jovens da Rua 57.

 E como eu conhecia os médicos do hospital, perguntei a um deles o que havia acontecido com a Clínica e a fonte radiativa de Césio.  Fui informado por eles que uma fonte de cobalto havia sido transferida para um outro local já aprovado pela Comissão Nacional de Energia Nuclear e havia deixado a fonte de césio 137 no antigo Instituto. Eu disse que provavelmente a sua fonte foi roubada. Eles disseram que era impossível. Fomos lá e fizemos uma monitoração e verificamos que não havia rastro de nenhum material radiativo e que o material havia sido roubado. Fiz contato com o secretário de saúde, avisei que era gravíssimo e perguntei se havia algum prospecto sobre a fonte de Césio, que havia sido importada em 1971. Me perguntaram se eu tinha contato com o pessoal do Comissão Nacional de energia nuclear. O Dr. José Júlio Rosental, diretor da CNEN foi avisado e foram tomadas as primeiras providências. No Palácio das Esmeradas, avisamos às autoridades sobre a situação gravíssima.

Foi decidido que todos as pessoas contaminadas seriam levadas para o antigo estádio olímpico. Voltamos ao ferro velho e evacuamos o local. Havia ainda um ferro velho dois, que também foi evacuado. Nesse ferro velho dois morava a menina Leide com a família. Quase todo o material havia ficado com a própria família. Tudo estava contaminado. 

O Dr. Rosental chegou a Goiânia às 00:30 do dia 30 de setembro de 1987 e a Comissão passou a assumir todas as ações e responsabilidade pelo acidente.” 

MEMÓRIA DO ACIDENTE - 

A história que chocou a opinião pública não pode ser esquecida. Uma cápsula de césio-137 – substância radioativa componente de um aparelho usado no tratamento de câncer, de propriedade do Instituto Goiano de Radioterapia (IGR), foi deixada na antiga sede do já desativado instituto. De acordo com as notícias da época, no dia 13 de setembro de 1987, os catadores de papel Wagner Motta Pereira e Roberto Santos Alves entraram no local, retiraram o aparelho, abriram algumas partes e venderam uma delas, a que continha a cápsula com o césio-137, para Devair Alves Ferreira, dono de um ferro-velho. Ao arrombar a cápsula, a golpes de marreta, Devair liberou o césio, um pó brilhante, parecido com purpurina. 

A cápsula com o césio 137 passou de mão em mão, em várias casas de família.  Por fim, foi levada de ônibus à Vigilância Sanitária por Maria Gabriela Ferreira, mulher de Devair. Ela suspeitou que os problemas de saúde da sua família tivessem alguma relação com o equipamento. 

O então presidente da República, José Sarney, mandou prender os culpados pelo acidente e visitou dez pessoas contaminadas, internadas no Hospital Geral do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) em Goiânia. O diretor-geral da Polícia Federal, Romeu Tuma, anunciou a abertura de inquérito. O presidente da CNEN, Rex Nazaré, admitiu a necessidade de rever as normas de licenciamento e fiscalização de instituições de Medicina Nuclear o país. O ferro-velho e as moradias dos pacientes mais contaminados foram demolidos. O Exército deslocou pessoas para região.  

Funcionários da CNEN ainda sem saber a dimensão do acidente, não tomaram precauções de segurança ao medirem a radiação: usavam calça jeans, tênis e sapatos. Os médicos Orlando Alves Teixeira, Criseide Castro Dourado e Carlos Bezzerril, sócios-proprietários do Instituto de Radioterapia; e o responsável técnico do instituto, físico hospitalar Flamarion Barbosa Coulart, foram indiciados pela Polícia Federal (PF). Na CNEN, só houve um indiciado: o chefe do Departamento de Instalações Nucleares e Materiais Nucleares, físico José Rosental. 

Mais tarde, a Procuradora da República solicitou a exclusão de Rosental do caso e a Justiça acolheu o pedido. Enquanto a CNEN afirmava que o caso estava sob controle, a cada dia apareciam outros focos de contaminação. No dia 23 de outubro de 1987 ocorreram as duas primeiras mortes. A menina Leide das Neves Ferreira, de 6 anos, filha de Ivo Alves Ferreira e sobrinha de Devair, foi uma das quatro vítimas fatais. Com as mãos contaminadas, Leide havia comido um pedaço de pão. Ela teve ulcerações na língua, boca e garganta, e lesões internas. A segunda vítima foi a tia da menina e mulher de Devair, Maria Gabriela, de 38 anos. Ambas morreram no Hospital Naval Marcilio Dias, no Rio de Janeiro, onde foram internadas com outros contaminados. 

 No dia 27 de outubro daquele ano morreu a terceira vítima: Israel Batista dos Santos de 22 anos, que trabalhava no ferro-velho e ajudara Devair a abrir o aparelho. No dia seguinte, morreu o empregado do ferro-velho Admilson Alves de Souza, de 18 anos. O catador de papel Roberto Santos Alves, de 21 anos, sobreviveu, mas teve o antebraço amputado por causa das lesões provocadas pela contaminação. O medo da contaminação levou a uma atitude violenta os moradores da vizinhança do Cemitério-Parque, em Goiânia, onde a menina Leide foi sepultada. Eles atiraram pedras e pedaços de cruzes de concreto contra o cortejo, em protesto pela escolha do local para enterrar as vítimas da contaminação radioativa.  

O presidente da CNEN, Rex Nazaré Alves culpou os donos da clínica, que não teriam comunicado à Comissão a desativação do aparelho radiológico. Os donos, por sua vez, culparam os catadores de papel e a própria CNEN, que deixou de fiscalizar o equipamento na antiga sede do instituto. 

Cerca de 112 mil pessoas que temiam estar contaminadas foram examinadas durante dois meses no Estádio Olímpico de Goiânia. Para atender às vítimas do acidente, o governo de Goiás criou a Fundação Leide das Neves. Segundo a médica Maria Paula Curado, que presidiu a Fundação naquela época, 244 pessoas estavam realmente contaminadas e 50 delas tiveram que receber tratamento hospitalar. Entre as 50 pessoas, 28 tiveram lesões e queimaduras causadas pela radiação.

 Desse grupo, 10 pacientes foram submetidos a cirurgias plásticas reparadoras, das quais oito sofreram síndrome aguda da radiação, depressão da medula, hemorragias e distúrbios de comportamento. No grupo de pessoas mais graves, cinco pessoas contraíram câncer e duas estavam em tratamento, naquela época. “Mas não existe um exame sequer capaz de provar que o câncer foi provocado pelo acidente”, avisava a médica. Devair morreu em maio de 1994 de insuficiência renal e hepática, conforme atestado médico. 


LIXO RADIOATIVO - 

Além de famílias destroçadas e outras que lutam na Justiça para serem indenizadas, o acidente deixou um grande problema para o futuro: seis mil toneladas de rejeitos radioativos armazenados no depósito em Goiânia com atividade radioativa por pelo menos 300 anos. Nesse total, estão 1.343 caixas metálicas; 4223 tambores de 200 litros; 10 contêineres marítimos; e oito recipientes de concreto.

 FOTO: CNEN – ARQUIVOS – BLOG -   

Leia no BLOG, em 16/9/2021: "Acidente com capsula de césio-137 em Goiânia faz 34 anos. Foi batismo de fogo, deixou mortos, medo e seis mil toneladas de lixo radioativo”; em 28/09/2021: “Acidente com césio-137 em Goiânia, 34 anos depois”, por Célio Bermann. 

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2 comentários:

  1. Tanua Malheiros semore bis tea,endo novidades. Acompanhei o acidente na época. Não sabia da participação inicial do físico citado. Parabéns.

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  2. Como escreveu Terezinha Costa, Tania Malheiros traz sempre uma novidade neste seu blog. Eu também acompanhei esse acidente (na época, eu trabalhava no Globo Ciência), e desconhecia a participação fundamental do físico Walter Mendes Ferreira.

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