“Batismo de fogo”. É assim que diretores da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) definem o maior acidente radiológico do mundo – fora de usina nuclear - ocorrido em Goiânia com uma cápsula de césio-137 (material radioativo), em setembro de 1987. A tragédia que provocou a morte de quatro pessoas e contaminou outras 271, mostra hoje - 34 anos depois - que pode ter servido de alerta à população brasileira, a partir do medo provocado pelo acidente, que gerou seis mil toneladas de lixo radioativo.
No réveillon de 2017, por exemplo, a CNEN
foi acionada para recolher um material estranho caído do espaço numa fazenda em
Mato Grosso. “Por favor, venham logo, estamos com medo de morrer contaminados”,
disse o fazendeiro. No local, técnicos constataram que estavam diante de uma
peça de satélite, sem radiação. Rebates falsos acontecem e são registrados nos
sistemas da instituição, disse o diretor de pesquisa e Desenvolvimento, Madison
Coelho de Almeida.
Madison e o físico Walter Mendes Ferreira, coordenador
do Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste, da CNEN, livram a
Comissão de qualquer responsabilidade no caso. Em entrevista ao blog disseram
que o Instituto Goiano de Radioterapia (IGR), “tinha o dever de comunicar o
encerramento de suas atividades para que o local fosse descomissionado, mas
abandonou o equipamento com o césio 137, sem qualquer aviso”.
No momento, segundo a CNEN, o Brasil possui 2.800
instalações radioativas nas áreas de medicina, indústria, pesquisa e produção
de rádio fármacos; mais 30 instalações nucleares e outras 40, minero-indústrias.
Todas são fiscalizadas, afirmaram. Afinal, qual a periodicidade de fiscalização?
“A fiscalização ocorre a cada autorização concedida e tem um prazo para o vencimento
que leva a renovação ou não da autorização. No caso de Goiânia, os operadores
da clínica falharam”, afirmaram.
MEMÓRIA DO ACIDENTE
A história que chocou a opinião pública não pode
ser esquecida. Uma cápsula de césio-137 – substância radioativa componente de
um aparelho usado no tratamento de câncer, de propriedade do Instituto Goiano
de Radioterapia (IGR), foi deixada na antiga sede do já desativado instituto. De
acordo com as notícias da época, no dia 13 de setembro de 1987, os catadores de
papel Wagner Motta Pereira e Roberto Santos Alves entraram no local, retiraram
o aparelho, abriram algumas partes e venderam uma delas, a que continha a
cápsula com o césio-137, para Devair Alves Ferreira, dono de um ferro-velho. Ao
arrombar a cápsula, a golpes de marreta, Devair liberou o césio, um pó
brilhante, parecido com purpurina. A cápsula com o césio 137 passou de mão em
mão, em várias casas de família. Por
fim, foi levada de ônibus à Vigilância Sanitária por Maria Gabriela Ferreira,
mulher de Devair. Ela suspeitou que os problemas de saúde da sua família tivessem
alguma relação com o equipamento.
O então presidente da República, José Sarney,
mandou prender os culpados pelo acidente e visitou dez pessoas contaminadas,
internadas no Hospital Geral do Instituto Nacional de Assistência Médica da
Previdência Social (Inamps) em Goiânia. O diretor-geral da Polícia Federal,
Romeu Tuma, anunciou a abertura de inquérito. O presidente da CNEN, Rex Nazaré,
admitiu a necessidade de rever as normas de licenciamento e fiscalização de instituições
de Medicina Nuclear o país. O ferro-velho e as moradias dos pacientes mais
contaminados foram demolidos. O Exército deslocou pessoas para região. Funcionários da CNEN ainda sem saber a
dimensão do acidente, não tomaram precauções de segurança ao medirem a
radiação: usavam calça jeans, tênis e sapatos.
Os médicos Orlando Alves Teixeira, Criseide Castro
Dourado e Carlos Bezzerril, sócios-proprietários do Instituto de Radioterapia;
e o responsável técnico do instituto, físico hospitalar Flamarion Barbosa
Coulart, foram indiciados pela Polícia Federal (PF). Na CNEN, só houve um
indiciado: o chefe do Departamento de Instalações Nucleares e Materiais Nucleares,
físico José Rosental. Mais tarde, a Procuradora da República solicitou a
exclusão de Rosental do caso e a Justiça acolheu o pedido.
Enquanto a CNEN afirmava que o caso estava sob
controle, a cada dia apareciam outros focos de contaminação. No dia 23 de
outubro de 1987 ocorreram as duas primeiras mortes. A menina Leide das Neves
Ferreira, de 6 anos, filha de Ivo Alves Ferreira e sobrinha de Devair, foi uma
das quatro vítimas fatais. Com as mãos contaminadas, Leide havia comido um
pedaço de pão. Ela teve ulcerações na língua, boca e garganta, e lesões
internas. A segunda vítima foi a tia da menina e mulher de Devair, Maria
Gabriela, de 38 anos. Ambas morreram no Hospital Naval Marcilio Dias, no Rio de
Janeiro, onde foram internadas com outros contaminados. No dia
27 de outubro daquele ano morreu a terceira vítima: Israel Batista dos Santos
de 22 anos, que trabalhava no ferro-velho e ajudara Devair a abrir o aparelho.
No dia seguinte, morreu o empregado do ferro-velho Admilson Alves de Souza, de
18 anos. O catador de papel Roberto Santos Alves, de 21 anos, sobreviveu, mas
teve o antebraço amputado por causa das lesões provocadas pela contaminação.
O medo da contaminação levou a uma atitude violenta
os moradores da vizinhança do Cemitério-Parque, em Goiânia, onde a menina Leide
foi sepultada. Eles atiraram pedras e pedaços de cruzes de concreto contra o
cortejo, em protesto pela escolha do local para enterrar as vítimas da contaminação
radioativa. O presidente da CNEN, Rex
Nazaré Alves culpou os donos da clínica, que não teriam comunicado a Comissão a
desativação do aparelho radiológico. Os donos, por sua vez, culparam os
catadores de papel e a própria CNEN, que deixou de fiscalizar o equipamento na
antiga sede do instituto.
Cerca de 112 mil pessoas que temiam estar
contaminadas foram examinadas durante dois meses no Estádio Olímpico de
Goiânia. Para atender às vitimas do acidente, o governo de Goiás criou a
Fundação Leide das Neves. Segundo a médica Maria Paula Curado, que presidiu a
Fundação naquela época, 244 pessoas estavam realmente contaminadas e 50 delas
tiveram que receber tratamento hospitalar. Entre as 50 pessoas, 28 tiveram lesões
e queimaduras causadas pela radiação. Desse grupo, 10 pacientes foram
submetidos a cirurgias plásticas reparadoras, das quais oito sofreram síndrome aguda
da radiação, depressão da medula, hemorragias e distúrbios de comportamento.
No grupo de pessoas mais graves, cinco pessoas contraíram
câncer e duas estavam em tratamento, naquela época. “Mas não existe um exame
sequer capaz de provar que o câncer foi provocado pelo acidente”, avisava a
médica. Devair morreu em maio de 1994 de insuficiência renal e hepática,
conforme atestado médico.
LIXO RADIOATIVO
Hoje, mais de três décadas depois da tragédia, a direção
da CNEN afirma que seus protocolos de fiscalização e segurança foram aprimorados,
mas não admite falha no caso do acidente de Goiânia. “Todos os recursos humanos e materiais foram
utilizados, como 315 servidores, além do apoio de equipes do Exército, Marinha
e Aeronáutica. “Somos referência internacional no atendimento de acidente radiológico”,
afirmaram os diretores. Segundo eles, “o acidente de Goiânia foi um batizado de
fogo”.
Na verdade, além de famílias destroçadas e outras que lutam na Justiça para serem indenizadas, o acidente deixou um grande problema para o futuro: seis mil toneladas de rejeitos radioativos armazenados no depósito em Goiânia com atividade radioativa por pelo menos 300 anos. Nesse total, estão 1.343 caixas metálicas; 4223 tambores de 200 litros; 10 contêineres marítimos; e oito recipientes de concreto.
FOTO: Técnicos vistoriam locais contaminados. Arquivos imprensa na época .
Parabéns pelo blog. Tania Malheiros, e pela memória dessa tragédia.
ResponderExcluirMuito obrigada pela participação! Gratíssima!!
ExcluirObrigado, Tania, muito importante não deixar essa história cair no esquecimento. Parabéns!
ResponderExcluirAgradeço imensamente a sua participação, grande incentivo.
Excluir