O fenômeno da radioatividade descoberto pelo físico francês Henri Becquerel em 1896, mostrou que o núcleo de um átomo muito energético tende a se estabilizar, emitindo o excesso de energia na forma de partículas e ondas. As radiações emitidas por esses núcleos chamadas de partículas, alfa e beta (pouco penetrantes) possuem massa, carga elétrica e velocidade. Os raios gama são os mais perigosos por serem mais penetrantes (energéticos), e de efeitos extremamente nocivos para a vida, são emitidos na forma de ondas eletromagnéticas, não possuem massa, e se propagam com a velocidade de 300.000 km/s.
Portanto, quando temos a presença indesejável de um material radioativo em local onde não deveria estar, existe assim a contaminação radioativa que gera irradiações. Para descontaminar um local, retira-se o material contaminante. Sem o contaminante o lugar não apresentará irradiação, nem ficará radioativo. Irradiação não contamina, mas contaminação irradia.
Feito este preâmbulo, relembramos o ocorrido há 34 anos, naquele 13 de setembro de 1987, no município de Goiânia (GO), considerado o maior acidente radiológico do mundo. Um aparelho de radioterapia contendo o material radioativo césio-137 (produzido em reatores nucleares) encontrava-se abandonado no prédio do Instituto Goiano de Radioterapia (IGR), instituto privado, no centro de Goiânia, desativado há cerca de 2 anos (isto mesmo, havia 2 anos que o equipamento estava abandonado no local). Dois homens, Roberto e Wagner, à procura de sucata, entraram no prédio do Instituto sem nenhuma dificuldade, pois o mesmo se encontrava em escombros, sem portas e nem janelas, e levaram o aparelho até Devair, dono de um ferro-velho.
Durante a desmontagem do aparelho, foram expostos ao ambiente 19 g de cloreto de césio-137 (CsCl), pó semelhante ao sal de cozinha. O encontrado não era exatamente na forma de pó, mais parecia como uma pasta, de cor acinzentada, e virava pó quando friccionado. Mas o que chamava muita atenção é que no escuro, brilhava intensamente com uma coloração azulada. Encantado com o brilho do material, Devair, passou a mostrá-lo e até distribuí-lo a amigos e familiares, inclusive para os irmãos Odesson e Ivo, que levou um pouco de césio para sua filha, Leide.
Expostas ao material radioativo, as pessoas começaram a desenvolver sintomas da contaminação (tonturas, náuseas, vômitos e diarreia), algumas após horas de exposição e outras após alguns dias, levando-as a procurarem farmácias e hospitais. Foram medicadas como portadoras de uma doença contagiosa. Os sintomas só foram caracterizados como contaminação radioativa em 29 de setembro, depois que a esposa do dono do ferro-velho, Maria Gabriela, levou parte do aparelho desmontado até a sede da Vigilância Sanitária. No dia 23 de outubro daquele ano morria Maria Gabriela, esposa de Devair e sua sobrinha Leide. Devair, juntamente com outras 15 pessoas, foram encaminhadas para tratamento de descontaminação no Hospital Naval Marcílio Dias no Rio de Janeiro, vindo a falecer em 1994.
Nestes 34 anos seis pessoas da mesma família Alves Ferreira morreram.
Para a verdade dos fatos, é necessário deixar registrado que o governo na época não sabia ainda o que estava acontecendo. Até que no dia 29 de setembro, um dia após Maria Gabriela e Geraldo (catador de recicláveis que morava no ferro-velho) terem levado a peça que continha o césio a Vigilância Sanitária. O físico Walter Mendes, de férias na cidade, solicitou um contador Geiger do escritório da Nuclebrás de Goiânia, emprestando-o à Vigilância Sanitária. E aí sim, foi constatado a radioatividade.
A propagação do césio-137 para as casas próximas onde o aparelho foi desmontado se deu por diversas formas. Merece destaque o fato de o CsCl ser higroscópico, isto é, absorver água da atmosfera. Isso faz com que ele fique úmido e, assim, passe a aderir com facilidade na pele, nas roupas e nos calçados. Levar as mãos ou alimentos contaminados à boca resulta em contaminação interna do organismo, o que aconteceu com Leide de seis anos de idade.
Oficialmente, segundo a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), quatro pessoas morreram, e além delas, das 112.800 pessoas que foram monitoradas, em 6.500 foram encontradas contaminação discreta: desse total 250 apresentaram contaminação corporal interna e externa que mereceram maior atenção e acompanhamento. Destas, 49 foram internadas e 21 exigiram tratamento médico intensivo.
Os trabalhos de descontaminação dos locais afetados produziram cerca de seis mil toneladas de lixo contaminado com 19 gramas de césio-137. O lixo armazenado em caixas, tambores, contêineres eram constituídos de roupas, utensílios domésticos, plantas, solo, animais de estimação, veículos, materiais de construção (algumas casas foram implodidas, sem que pudesse tirar nada de dentro, nem brinquedos, fotografias). Todo este lixo radioativo foi armazenado em um depósito construído na cidade de Abadia de Goiás, vizinha a Goiânia, onde deverá ficar, pelo menos, 180 anos.
Quatorze anos depois, o governo de Goiás incluiu mais 600 pessoas na lista de vítimas. O Ministério Público Estadual (MPE) chegou à conclusão que, policiais e funcionários que trabalharam durante o período da tragédia foram contaminados e alguns morreram em consequência de doenças provocadas pelo césio. E estas mortes nunca entraram nas estatísticas oficiais.
Por outro lado, o Centro de Assistência Leide das Neves Ferreira (em homenagem à menina vítima fatal do acidente), criado pelo governo do estado para acompanhar os contaminados, não admitia relacionar o acidente com o césio, as mortes e as doenças denunciadas pelo MPE. Foi então assinado um acordo entre o Estado e o MPE para que as novas vítimas, seus filhos e netos recebessem assistência médica e indenização.
Após trinta e quatro anos do desastre radioativo, as várias pessoas contaminadas pela radioatividade não recebem os medicamentos, que, segundo leis instituídas, deveriam ser distribuídos pelo governo. E muitas pessoas envolvidas diretamente com o ocorrido, ainda vivem nas redondezas da região do acidente, entre as Ruas 57, Avenida Paranaíba, Rua 74, Rua 80, Rua 70 e Avenida Goiás, sem oferecer nenhum risco de contaminação.
Este desastre deixou marcas profundas nas pessoas mais diretamente afetadas e que sobreviveram, e em todo município. O que caracterizou este episódio, e deixou evidente a sociedade, foi o despreparo, a inoperância, o improviso e o desinteresse demonstrado pelo poder público com a saúde das pessoas, principalmente manipulando informações.
A Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) ficou desnudada diante do grave desastre de Goiânia. Mas não é somente a CNEN: todas as atividades nucleares no Brasil continuam surpreendendo negativamente, pois transcorrido 34 anos as atitudes e a postura de hoje são semelhantes a do passado. Pouca coisa mudou, em relação à transparência e a prepotência. E o descrédito é cada vez mais percebido pela população, quando as atividades desenvolvidas na área nuclear permanecem sob sigiloso.
Os exemplos mais recentes que acontecem, ou podemos dizer tragédias anunciadas, é o que atingem as populações vizinhas da barragem de resíduos radioativos (área equivalente a 100 Maracanãs) no município de Caldas em Minas Gerais, e da mina de urânio de Caetité na Bahia. Mas estas são outras histórias que devemos estar atentos para evitar que a população padeça e morra pela irresponsabilidade de governantes.
Artigo de Heitor Scalambrini Costa, professor associado aposentado da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), graduado em Física pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/SP), Mestrado em Ciências e
Tecnologias Nucleares na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Doutorado
em Energética, na Universidade de Marselha/Comissariado de Energia Atômica
(CEA)-França. Ativista antinuclear; e Odesson Alves Ferreira, da Associação das
Vítimas do Césio 137/AVCésio.
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