quarta-feira, 19 de maio de 2021

Medida Provisória da Autoridade de Segurança Nuclear afronta à Lei Brasileira do setor. É também a MP dos três jabotis. Por Sidney Rabello

 


A Lei Brasileira da Convenção de Segurança Nuclear, na forma de Decreto nº 2.648, de 1º de julho de 1998, estabelece como deve ser criado um órgão regulatório de segurança nuclear que na MP se denomina Autoridade Nacional de Segurança Nuclear (ANSN). No entanto, a MP parece ignorar a Lei Brasileira da Convenção por completo ao introduzir tudo o que é vedado na Convenção de Segurança Nuclear, principalmente nos aspectos de independência de atuação, seja pela indefinição do posicionamento da ANSN no organograma governamental que evite pressões políticas, seja pelo comprometimento orçamentário pela dependência de dotações de empresas privadas licenciadas pela ANSN, ou seja por não definir de forma completa as atribuições conforme estabelecidos na própria Convenção. 

A MP não soube transpor e regulamentar cada artigo da Lei Brasileira da Convenção para criação da ANSN, ignorando-a completamente, inclusive nem a citando em nenhum ponto da MP. 

A MP é um completo desprezo pela ordem jurídica brasileira ao ignorar a Lei Brasileira da Convenção, é um desrespeito ao Acordo Internacional celebrado junto à Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), órgão da ONU, e, mais importante, é um desrespeito à segurança da população brasileira quanto ao uso da energia nuclear. 

A AIEA desenvolveu, em apoio aos governos signatários da Convenção, três normas para a constituição e criação da ANSN, que são ignoradas completamente pela MP, apesar de reconhecidas como normas aplicáveis ao Brasil pela Lei Brasileira da Convenção. Cabe destacar que tanto a Convenção como as normas da AIEA estabelecem as “cláusulas pétreas” para a criação e constituição da ANSN, isto é, não são detalhes a serem incluídos em um Regimento Interno de fácil modificação por ato ministerial, argumento muito utilizado para iludir os leigos. 

A MP prevê um órgão colegiado com a responsabilidade de aprovar os documentos de avaliação de segurança e de fiscalização produzidos pelas Diretorias de Execução para fins de concessão de licenças. No entanto, a MP incorre em uma contradição, pois o órgão colegiado é constituído dos Diretores de Execução. Isto é, quem aprova os documentos é quem elabora. Isto torna o Colegiado um órgão sem uma função efetiva, torna um órgão sem sentido de sua existência. O Colegiado da MP é apenas um órgão que utiliza um CARIMBO BEM GRANDE para formalizar a aprovação pelos Diretores de Execução o que eles mesmos elaboraram com seu corpo técnico. 

Nos países desenvolvidos como os EUA, o equivalente à ANSN é constituído por um órgão colegiado, denominado de comissão ou conselho, composto de cinco membros em dedicação exclusiva, com a função de aprovar os documentos pelas diretorias executivas e é vedada a participação dos diretores executivos do órgão colegiado. Em outras palavras, a deliberação deve ser completamente separada da execução. Apesar da simpatia pelos EUA, a MP foi elaborada ignorando o órgão congênere estadunidense, a United States Nuclear Regulatory Commission (USNRC). 

A ANSN foi criada principalmente para resolver a grande contradição de as atividades regulatórias de segurança nuclear conviverem com as atividades de promoção como pesquisa, produção e prestação de serviços. Isto é, atualmente as atividades regulatórias convivem na Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) com instituições de pesquisa do IPEN, CDTN, IEN, IRD e Institutos de Poços de Caldas e Recife. A MP criou a ANSN para não haver mais o convívio de atividades regulatórias com promoção. No entanto, isto não é real. A MP prevê a manutenção de atividades de promoção no seu interior como de pesquisa e de prestação de serviços. 

A ANSN não deve ter participação em nenhuma atividade de desenvolvimento de energia nuclear ou do Programa Nuclear Brasileiro (PNB), que são atividades de promoção. A Autoridade não deve estar incluída no desenvolvimento do PNB, de forma a avaliar e fiscalizar com independência a segurança das instalações e o uso da energia nuclear. Portanto, as atividades de monopólio da energia nuclear, relacionadas ao PNB, não podem estar elencadas dentre as atribuições da ANSN como está na MP e devem ser mantidas na CNEN. Este é o primeiro jaboti que a MP contempla. 

O segundo jaboti é de mesma natureza de atividades de promoção e foi formulado de forma muito sutil. Ele se manifesta de forma enganosa na constituição do quadro de pessoal. Primeiro, a MP mantém o mesmo Plano De Carreiras para a Área de Ciência e Tecnologia. É denunciador de que a MP propõe que manterá atividades de pesquisa e de prestação de serviços, convivendo com atividades regulatórias. Uma coisa é manter a mesma estrutura salarial para não alterar gastos, outra coisa é não prever uma Carreira de Segurança Nuclear. A suspeita da manutenção das atividades de promoção se confirma na constituição do quantitativo dos quadros técnicos: 104 pesquisadores, 375 tecnologistas e 159 técnicos. Atualmente, os profissionais dedicados às atividades regulatórias de segurança nuclear totalizam um número inferior a 200. Pelo contingente expressivamente superior (638), conclui-se pela incorporação de um ou dois institutos de pesquisa e prestação de serviços, claramente de atividades de promoção. Os números sugerem a incorporação do IRD e do Instituto de Poços de Caldas.  Desta forma, fica bem caracterizada a sutileza do segundo jaboti. 

O terceiro jaboti é o da raposa cuidando do galinheiro. Na MP da ANSN é incluído o artigo sétimo que cria o órgão regulatório ou Autoridade de Segurança Nuclear da Marinha para conceder licenças e autorizações para suas instalações. Na verdade, sem ser explicitado no caput da MP, são criadas duas Autoridades: uma exercida pela Marinha para as suas instalações e a ANSN para as demais instalações do país. A Autoridade de Segurança da Marinha para licenciar suas instalações representa um grande risco para segurança de suas instalações e para a população brasileira. É uma afronta ao conceito de segurança nuclear. Nos países desenvolvidos, como os EUA, há um órgão civil dedicado ao licenciamento das instalações militares e, por serem instalações inéditas, como protótipos, os requisitos normativos são mais exigentes e abrangentes. Portanto, o Brasil não merece correr o grande risco que representa o artigo sétimo da MP, um grande jaboti. 

Cabe destacar que os servidores atuais da CNEN, que atuam em segurança nuclear e que futuramente constituirão o quadro de pessoal da ANSN, são tão brasileiros quanto qualquer militar e saberão licenciar as instalações militares no sigilo requerido e dentro da lei, não sendo necessária a criação da Autoridade da Marinha. Os profissionais com treinamento adequado e experiência em segurança nuclear são em número muito pequeno no Brasil e a divisão deste contingente em duas instituições somente enfraquecerá a segurança das instalações. 

A MP é bastante deficiente em instrumentalizar a ANSN com recursos que garantam a proteção dos trabalhadores em energia nuclear, da população e do meio ambiente dos aspectos danosos da energia nuclear, bastante conhecidos pelo acidente de Goiânia com uma fonte radioativa e com os acidentes de fusão do núcleo do reator de Three Mile Island, em 1979, nos EUA; de Chernobyl, na URSS, em 1986; e de Fukushima em 2011.  Portanto, sugiro que esta MP seja rejeitada na íntegra e sugiro também que seja tomado conhecimento de um projeto de lei alternativo ao oficial, que foi consolidado em debate em fórum aberto a todos associados da Associação dos Fiscais de Energia Nuclear (AFEN) e pela incorporação das contribuições em consulta aos profissionais de segurança nuclear da CNEN. O projeto de lei alternativo tem como base de elaboração a Lei Brasileira da Convenção de Segurança Nuclear e as normas da AIEA dedicadas à criação de um órgão regulatório de segurança nuclear, assim como a legislação de órgãos de países desenvolvidos, como os EUA. 

Autor: Sidney Luiz Rabello é formado em Engenharia Elétrica pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), especializado em Segurança Nuclear, pós graduado em Engenharia Nuclear. 

E-mail: sidney.rabello@gmail.com


 

2 comentários:

  1. Me desculpe, mas o artigo contém um equívoco serio: nos EUA, assim como no Reino Unido e na França, as atividades nucleares NÃO são regulamentadas pelos respectivos órgãos regulatórios civis (U.S. Nuclear Regulatory Commission, UK Office for Nuclear Regulation, e Autorité de Sûreté Nucléaire, respectivamente) mas por órgãos reguladores de segurança nuclear. Nos EUA há o Naval Reactors, diretamente subordinado aos Secretários da Marinha e da Energia. No Reino Unido há o Defense Nuclear Safety Regulator. Já na França temos o Délégué à la sûreté nucléaire et à la radioprotection pour les activités et installations intéressant la Défense, subordinado ao Ministério da Defesa. Foram nesses paradigmas que a Autoridade Naval de Segurança Nuclear se baseou. Faltou também apontar para o óbvio: a Autoridade Naval já havia sido criada em 2019 pela Lei nº 13.976, sancionada em 7 de janeiro de 2020, que, à semelhança dessa MP, a coloca dentro do diploma legal da Autoridade Nacional e com competência limitada à regulação. Ou seja, a autoridade Nacional é quem estabelece os padrões nacionais, à Autoridade Naval compete aplicá-los de forma adequada às particularidades da propulsão nuclear de meios navais, o que não faria sentido esperar da Autoridade Nacional.
    Obrigado.
    Tuxaua Quintella de Linhares, M. SC. Engenharia Nuclear na área de Análise de Segurança.

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  2. Prezado Sr., agradecemos a sua participação. Att.

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