Enquanto o roubo de uma picape Saveiro que
transportava cinco unidades de blindagens de geradores com as fontes
radioativas está se transformando numa angustiante sucessão de notícias sobre
os destinos do material radioativo, amplamente noticiado neste BLOG pela
jornalista Tania Malheiros, várias questões devem ser levantadas. A começar
pela quantidade de unidades que estavam sendo transportadas. A primeira
informação era de que havia quatro unidades. Depois, a nova informação mais
detalhada indicava que se tratavam de cinco unidades, sendo quatro de
99Mo/99mTc já utilizadas (exauridas), e uma quinta contendo uma dose de 27,9
mCi de atividade do gerador de 68Ge/68Ga, ainda a ser utilizada.
A primeira
questão é sobre as condições de
transporte de materiais radioativos.
Conforme o boletim de ocorrência do caso, lavrado no 49º Distrito Policial de
São Mateus, o motorista da picape alegou que estacionou o veículo na noite de
sábado (29) em frente a sua residência, na Rua Félix Bernadelli, no Jardim
Bandeirante, na Zona Leste de São Paulo. O roubo do veículo foi no domingo, dia
30 de junho. O motorista do veículo deu-se conta do roubo apenas ao acordar na
manhã do domingo, e foi responsabilizado por não ter deixado o veículo com o
material no IPEN (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares), localizado
no campus da USP no Butantã.
EVENTUAL ACIDENTE DE TRÁFEGO -
O motorista da
Saveiro é funcionário da empresa de transporte MEDICAL ALD (Medical Armazenagem
Logística e Distribuição Ltda), que utiliza um veículo como a Saveiro, que não
possuía nenhuma forma de segurança para evitar roubo, nem tampouco num eventual
acidente de tráfego. Apesar dessas fragilidades, e do fato do transporte ser
feito apenas por um funcionário, a Medical ALD alega ser regulamentada pela
CNEN e ANVISA. De fato, a CNEN afirma que o cadastro da empresa transportadora
está regular junto ao órgão regulador, estando autorizada a realizar operações
de transporte de materiais radioativos.
Quais são os critérios que a CNEN
utiliza para regulamentar as atividades de transporte, e que permitem tais
fragilidades? Com certeza, não devem ser os critérios definidos pelo Código de
Conduta em Segurança de Fontes Radioativas da Agência Internacional de Energia
Atômica (IAEA), que preconiza a utilização de veículos dotados de proteção para
suportar acidentes e define a necessidade de mais de um funcionário no
transporte para evitar exaustão de um só indivíduo na condução do veículo. E
com que base a CNEN responsabiliza o motorista por “imprudência”, quando a
empresa de transporte parece não oferecer treinamento para o transporte apesar
de contar com o aval da CNEN, e prefere ter apenas um motorista para o
transporte, o que reduz seus custos na prestação dos serviços de transporte de
material radioativo.
A segunda questão é sobre a demora no tempo para que o fato fosse notificado pela CNEN. Embora
o roubo tenha acontecido no domingo (30/6) a Comissão Nacional de Energia Nuclear
(CNEN), só divulgou uma pequena nota sobre o caso na última quinta-feira (4/7).
Porque esta demora? Talvez com a finalidade de evitar um pânico na população
que mora na região do roubo? Demora que foi acompanhada por uma deliberada
omissão da grande imprensa que se eximiu de tornar público o ocorrido.
MANIPULAÇÃO
INADEQUADA -
A CNEN, órgão vinculado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e
Inovação, veio a público para informar que ““o material radioativo furtado com
o veículo estava acondicionado em embalagens de chumbo blindadas para evitar
irradiação no meio ambiente”, alertando que “a manipulação inadequada pode vir
a causar danos à saúde”, orientando que, uma vez encontrando as fontes
radioativas, havia a necessidade de manter distância segura e que fosse contatada
imediatamente a Comissão e também a Polícia.
Ao mesmo tempo a CNEN não divulgou
as características do veículo e indicava que não havia riscos, pois “essa
fonte, por sua baixa atividade, se enquadra na categoria 4, representando risco
radiológico muito baixo para a população e o meio ambiente”.
Vamos aos fatos!
As
unidades de blindagens de geradores com as fontes radioativas são latas ou baldes
que contém o material radioativo acondicionado por embalagens de chumbo. Se estas
embalagens forem abertas, quem tiver contato tem risco de desenvolvimento de
câncer e, em alguns casos, esse contato pode ser letal. Isso porque as chamadas
unidades de blindagem contendo 99Mo/99mTc já utilizadas (exauridas) são
resultantes do processo de conversão do Molibdênio (99Mo) que, quando exposto em
exames de diagnóstico de câncer utilizado como contraste, é transformado em uma
segunda substância: o Tecnécio (99mTC).
Nos exames, o material é manipulado
antes e, só depois de ser transformado, é que o paciente tem contato. Por isso,
não há risco à saúde. O problema é que a substância de origem, o Molibdênio
(99Mo), é radioativa e perigosa para à saúde, e a reação no processo de
exposição para a obtenção do Tecnécio (99mTC) pode não ter sido completa. Isso
explica os cuidados necessários observados quando na última sexta-feira (5/7) policiais
do 49º Distrito Policial de São Mateus, em São Paulo, encontraram a primeira
unidade violada num desmanche de veículos roubados no Jardim Marilu, Zona Leste,
onde também foi encontrada depenada a própria picape de transporte, a polícia
isolou a área por treze horas enquanto uma equipe de Produtos Perigosos do
Corpo de Bombeiros, técnicos da CNEN e técnicos do IPEN analisavam o material
encontrado utilizando trajes de proteção à radiação (Tyvek) que poderia
alcançar altos níveis pela eventual presença da substancia Molibdênio no
material definido inicialmente como exaurido.
Entretanto, uma questão grave é
que a primeira unidade foi encontrada vazia, sem o 99Mo/99mTc, pois só o balde
utilizado para transporte do material radioativo e sua tampa foram encontrados.
Da mesma forma, na tarde do sábado (6/7) foi encontrado em uma loja de baterias
na Avenida Itaquera, 2753 - Jardim Maringá, na zona leste da cidade, mais um
desses baldes, também violado e sem a substância radioativa, junto a peças de
chumbo utilizadas para a blindagem. Ou seja, este material radioativo
denominado como exaurido pela CNEN ainda não foi encontrado! E ainda,
contrariamente ao que supõe a polícia, em suas manifestações à imprensa, o
furto pode não ter sido feito por ladrões que desconheciam a natureza do
material que estavam furtando. Pelo contrário, trata-se de um material que
ainda pode ser processado e convertido em radioisótopos para variadas
finalidades, incluindo objetivos criminosos que podem pôr em risco a segurança
e saúde da população.
DEMONSTRAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA -
Todavia, a questão é
ainda mais grave é na unidade de blindagem que contém o 68Ge/68Ga. O Germânio
(68Ge) é um elemento químico radioativo que se transforma em Gálio 68 (68Ga).
Nessa transição, feita em laboratório, são dispersadas várias partículas
radioativas. Ele é usado como contraste em exames de diagnóstico por imagem
para câncer de próstata, metástase do câncer de próstata e linfomas. Segundo as
informações da Medical LDA, este material estava sendo transportado para ser
utilizado como fonte geradora de radiofármacos nas cidades de Curitiba/PR e
Blumenau/SC para uso médico. Também aqui, a preocupação com o destino final do
furto deve ser destacada por se tratar de material radioativo não utilizado.
Na
segunda-feira, (8/7), dias depois do furto ter ocorrido, a CNEN comunicou que localizou
a coluna de Ge-68 (fonte) e que a coluna foi encontrada integra no mesmo ferro-velho
que vendeu das peças de chumbo para uma loja de baterias em Itaquera. No
comunicado a CNEN indicou que não houve rompimento do material, dispersão ou
contaminação. Quais foram as provas, as comprovações desse achado? Fotos do
ferro-velho com a coluna dentro de um balde envolvida com a blindagem de
chumbo? Podemos sim, colocar em descrédito a CNEN, por toda sua demonstração de
incompetência na divulgação dos fatos - demora, insuficiência nas informações
(características do veículo furtado cuja aproximação ofereceria riscos), falta
de clareza ao procurar ilustrar os fatos e suas consequências.
Vale relembrar o
sumiço de duas ampolas, cada uma com oito gramas de urânio enriquecido, nas instalações
das Indústrias Nucleares do Brasil (INB), em Resende (RJ), em setembro de 2023,
fato que foi “esquecido” pois até hoje não se tem ideia do destino do urânio
altamente radioativo, dada a omissão da CNEN.
Apesar do que temos levantado neste
artigo, acerca das incertezas e dúvidas que cercam o roubo em questão, o
comunicado do “achado” da CNEN desta segunda-feira termina afirmando: “Com
isso, a CNEN encerra essa ocorrência no âmbito de sua competência”. Como assim?
Encerra a ocorrência? Considerar o caso encerrado, apesar de ainda haver
material radioativo não encontrado – as quatro unidades contendo o Molibdênio
(99Mo), que é radioativo e perigoso para à saúde – consideradas pela CNEN como
“"sem apresentar riscos".
Por fim, a terceira questão diz respeito à ausência de uma agência de regulação das
atividades nucleares no nosso país. A CNEN, criada em 1956,
ainda exerce as funções de estabelecer normas e regulamentos em proteção
radiológica e de ser responsável por regular, licenciar e fiscalizar a produção
e a utilização da energia nuclear no Brasil.
RAPOSA TOMANDO CONTA DO GALINHEIRO
-
No entanto, a CNEN também atua na operação de instalações nucleares e
radiativas. Ou seja, na estrutura atual a CNEN desempenha o papel da “raposa
que toma conta do galinheiro”, para utilizar uma prosaica citação popular. Quanto
tempo ainda o país tem de esperar para que a Autoridade Nacional de Segurança
Nuclear (ANSN), criada em 15 de outubro de 2021 pela Lei nº 14.222, e
regulamentada em 21 de julho de 2022 por intermédio de Decreto nº 11.142, seja
efetivada para possibilitar que assuma concretamente sua atribuição de cuidar
dos aspectos regulatórios relacionados ao uso seguro das radiações ionizantes?
Para
tanto, é preciso ainda a aprovação dos nomes de seus dirigentes pelo Senado
Federal, por meio de sabatina na Comissão de Constituição e Justiça. Quanto
tempo a população brasileira deverá ainda esperar para que o Senado Federal
inclua na sua pauta um assunto cuja importância parece não sensibilizar os
parlamentares? A existência de uma ANSN vai proporcionar que normas sejam
criadas para que furtos de material radioativo não ocorram mais por transporte
em condições inadequadas.
É o que se espera! Fontes radioativas podem matar!
CÉLIO
BERMANN - Doutor em Engenharia Mecânica na área de Planejamento de Sistemas
Energéticos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em
Engenharia de Produção na área de Planejamento Urbano e Regional pela
COPPE/UFRJ e professor associado do Instituto de Energia e Ambiente da
USP.
FOTO: Acervo pessoal -
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