"O artigo Usinas Nucleares e Manipulações apresenta críticas duras ao setor nuclear brasileiro e à atuação das instituições responsáveis pela política, operação e fiscalização dessa área estratégica. Trata-se de um debate legítimo e necessário, mas que exige rigor técnico, precisão factual e responsabilidade na formulação de juízos. Infelizmente, o texto em questão incorre em generalizações amplas, interpretações desproporcionais e conclusões que, embora retoricamente eficazes, carecem de sustentação técnica e documental. É essencial separar críticas pertinentes — que existem e devem ser acolhidas — de narrativas que distorcem o estado real da energia nuclear no Brasil e no mundo.
1. O enquadramento do setor como “manipulação” é injustificado e empobrece o debate público. A expressão “manipulações” utilizada no título sugere a existência de uma coordenação deliberada de enganos, ocultações ou fraudes sistêmicas no setor nuclear brasileiro. Essa sugestão não é sustentada por fatos apresentados no próprio artigo. O que existe, e é amplamente reconhecido internamente, são desafios típicos de empreendimentos de grande escala: licenciamento complexo, histórico de atrasos e interrupções, dificuldades de gestão e problemas de governança que precisam ser corrigidos — e que não são exclusivos do Brasil. Usinas nucleares nos Estados Unidos, Reino Unido, França e Finlândia enfrentaram ou enfrentam dificuldades semelhantes. Apresentar tais desafios como “manipulação” substitui a análise estruturada por uma alegoria conspiratória que nada acrescenta à compreensão pública do problema.
2. Falta de dados, contextualização internacional e análise comparativa. Embora o artigo cite episódios e percepções, não apresenta indicadores técnicos, análises regulatórias comparadas ou dados empíricos que permitiriam ao leitor aferir a real dimensão dos problemas. Sem métricas — de segurança, desempenho, custos, atrasos, práticas de transparência, governança regulatória ou impacto ambiental — não é possível sustentar conclusões categóricas sobre a excepcionalidade brasileira. Em contraste, o setor nuclear brasileiro tem indicadores acima das médias internacionais em: segurança operacional, doses ocupacionais, cumprimento regulatório, histórico de acidentes, confiabilidade das unidades em operação (Angra 1 e Angra 2). A crítica perde profundidade e rigor ao ignorar essas informações disponíveis em relatórios públicos da Eletronuclear, CNEN, INPO, WANO e AIEA.
3. Crítica seletiva aos riscos sem consideração pelos benefícios
ou contrapesos. O artigo mobiliza uma narrativa centrada exclusivamente no medo
e no risco, sem considerar: a segurança
de suprimento decorrente da energia firme,
o papel da energia nuclear na descarbonização, o
custo sistêmico evitado por fontes de base, a demanda crescente por hidrogênio,
data centers e eletrificação,
o avanço global dos SMRs e reatores avançados, a
necessidade do Brasil de reconquistar autonomia energética diante de um sistema
hidrotérmico tensionado.
A omissão desses fatores conduz o leitor a uma visão incompleta, sugerindo que a energia nuclear é um fardo imposto à sociedade, quando na realidade integra a matriz de países técnicos, industrializados e ambientalmente responsáveis.
4. O histórico citado exige precisão e contextualização. O texto evoca episódios antigos sem distinção entre fatos, interpretações e percepções, criando a impressão de uma continuidade inalterada entre passado e presente. Contudo: A governança atual é substancialmente distinta daquela dos anos 1980 e 1990. A regulação evoluiu profundamente após TMI, Chernobyl e Fukushima. Os mecanismos de transparência ampliaram-se, inclusive com auditorias independentes. A Eletronuclear passou por reestruturações e programas de compliance de padrão internacional. O setor nuclear tornou-se mais integrado aos compromissos ambientais e climáticos. Ignorar essas mudanças gera um quadro anacrônico que impede o leitor de enxergar o setor como ele é hoje, não como ele foi décadas atrás.
5. A crítica perde força ao não propor soluções concretas. Um debate produtivo sobre energia nuclear — ou sobre qualquer política pública complexa — precisa conter três elementos:
1. diagnóstico factual, 2. análise contextualizada e comparada, 3. recomendações implementáveis. O artigo apresenta essencialmente o primeiro elemento, mas carece de precisão factual e de qualquer esforço de proposição. Sem isso, transforma-se em denúncia vaga, e não em contribuição substantiva à política pública. Reformas úteis poderiam incluir: fortalecimento regulatório da CNEN, avanços na transparência contratual, auditorias independentes periódicas, aprimoramento de governança nas estatais do setor, modernização jurídica para permitir SMRs e parcerias público-privadas, comunicação científica acessível à sociedade. Nada disso é debatido no texto criticado.
6. A sociedade merece crítica firme, mas igualmente merece análise séria. A energia nuclear é, simultaneamente, um recurso estratégico e um objeto de paixões ideológicas. Exatamente por isso, precisa ser tratada com responsabilidade analítica, rigor e honestidade intelectual. A crítica jornalística desempenha papel fundamental no escrutínio do setor — mas ela precisa ser proporcional aos fatos, informada por dados verificáveis e formulada de maneira a enriquecer o debate democrático. A adoção de termos como “manipulação”, sem comprovação documental ou análise comparada, não esclarece: obscurece. Não fiscaliza: inflama. Não orienta: desinforma.
O setor nuclear brasileiro possui falhas, desafios e urgências — mas também possui competência técnica, padrões de segurança reconhecidos internacionalmente, relevância estratégica para o país e um papel indispensável na transição energética. A crítica construtiva é bem-vinda. A generalização alarmista, não".
TEXTO DE LEONAM DOS SANTOS GUIMARÃES: Doutor em Engenharia Naval e Oceânica pela USP e Mestre em Engenharia Nuclear pela Universidade de Paris XI, é CEO da Eletrobrás Eletronuclear, membro do Grupo Permanente de Assessoria em Energia Nuclear do Diretor Geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), membro do Conselho de Representantes da World Nuclear Association (WNA). Foi Presidente da Seção Latino Americana da Sociedade Nuclear Americana, Diretor Técnico-Comercial da Amazônia Azul Tecnologias de Defesa SA – AMAZUL, Assistente da Presidência da Eletrobrás Eletronuclear e Coordenador do Programa de Propulsão Nuclear do Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP).
LEIA:USINAS NUCLEARES E MANIPULAÇÕES RETÓRICAS, por Heitor Scalambrimi Costa.
FOTO: ACERVO PESSOAL –
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