Em
artigos anteriores, descrevi de maneira despretensiosa e sem esgotar o assunto,
as principais características e desafios da chamada Economia do Hidrogênio.
Neste texto apresento algumas definições importantes da área, como o do Hidrogênio
Verde e outros, obstáculos da introdução tecnológica no mercado de energia do
binômio hidrogênio/célula a combustível e suas particularidades.
Certamente que, um estabelecimento pleno da
Economia do Hidrogênio pode mitigar problemas ambientais, agravados ano a ano
no mundo todo, devido às mudanças climáticas, causadas pelas emissões de gases
de efeito estufa, que, por sua vez, provém da queima de combustíveis fósseis e
outras causas de emissões nocivas, todas de caráter antropogênico.
Uma transição
energética global se faz urgente em nossa sociedade moderna. Esta mudança de
paradigma, que pressupõe mudanças radicais em setores bem estabelecidos da
economia e da sociedade, inclui a introdução, em grande escala de um
combustível renovável e o melhor candidato é, sem dúvida, o hidrogênio
produzido de fonte primária renovável, o chamado hidrogênio verde.
A degradação do meio ambiente é, portanto, a
grande força motriz para a implementação da Economia do Hidrogênio, cujas
consequências, como o aquecimento global, são catastróficas. Poucos ainda
insistem em duvidar deste fato.
MENOS TENSÕES POLÍTICAS -
Outra observação
interessante se faz necessária e diz respeito à geografia. Todos os recursos
naturais de fontes de energias primárias estavam ou estão localizados em determinadas
regiões do planeta, beneficiando, naturalmente, os países destas regiões. Este
fato gerou e gera conflitos político-econômicos e até guerras. Vale, então, a
seguinte reflexão: como o hidrogênio
pode ser obtido de diversas maneiras, qualquer país ou região do planeta pode
obtê-lo. Neste caso, com a introdução da Economia do Hidrogênio, tem-se pela
primeira vez na história da humanidade uma democratização das fontes primárias
de energia, que seguramente gerará mais progresso e menos tensões políticas.
Define-se
uma Economia do Hidrogênio como sendo a economia, cuja fonte energética
principal que move essa economia, num certo período da humanidade, provenha do
vetor energético hidrogênio. Obviamente, deve haver uma transição mais ou menos
rápida entre as duas fontes, dependendo de ações políticas eficientes e/ou um aumento
significativo das catástrofes climáticas no globo. Trato dessas ações neste artigo.
HIDROGÊNIO E MUDANÇAS CLIMÁTICAS -
As mudanças climáticas já são um problema
global do nosso tempo, resultado direto do aumento das emissões de gases de
efeito estufa, provenientes da queima de combustíveis fósseis, destruição das
florestas, entre outras causas. Como consequência, o aumento da temperatura
média global, gera eventos climáticos extremos, elevação do nível do mar e
perda de biodiversidade. Este ano devemos superar a meta 1,5°C de elevação da
temperatura média do planeta (Acordo de Paris). De acordo com o relatório
"Global Emission Gaps" da United Nations Environmental
Program, lançado na COP29 em Baku, Azerbaijão, com as atuais emissões,
estamos indo para uma média de aquecimento global de 3,1°C, ou seja, os
compromissos de Paris não só não foram cumpridos, como a situação piorou muito
mais. Para limitar esses efeitos, a transição para fontes de energias limpas e
sustentáveis é mandatória.
Os hidrogênios verde e azul são excelentes
candidatos para a transição energética desejada. O verde, gerado por eletrólise
da água usando energia renovável é o mais sustentável e o azul, por sua vez, produzido a partir de gás natural, mas com
captura e armazenamento de carbono é uma boa alternativa para a transição, bem
como ainda o cinza, obtido da reforma catalítica do gás natural, que gera hoje
o hidrogênio mais barato do mercado. O cinza possui uma vantagem não tão óbvia,
como a redução pela metade de emissões, devido à alta eficiência energética numa
conversão eletroquímica, normalizada por unidade de energia. Ainda temos o
hidrogênio rosa, de fonte nuclear, mas este assunto reservamos para outra
oportunidade.
O assunto já faz parte da agenda de governos: na União Europeia há
planos ambiciosos para o uso de hidrogênio verde até 2050, com investimentos bilionários
em infraestrutura; na Ásia, o Japão lidera tecnologias de hidrogênio, incluindo
veículos movidos a células a combustível e a Coreia do Sul possui a maior usina
de geração centralizada de energia elétrica e calor a célula a combustível do
mundo, de 79 MWe, em Shinincheon
Bitdream.
O Brasil tem potencial para se tornar líder na produção de hidrogênio
verde, exportando para mercados internacionais, principalmente na região nordeste,
rica em recursos naturais favoráveis à produção de solar, eólica e de biomassa,
com grande potencial para protagonizar a transição energética do país. Dentre
os estados nordestinos, o Ceará, Piauí e a Bahia ocupam papel de destaque na
produção de energia limpa, graças à posição geográfica privilegiada e à
abundância dessas fontes.
INÚMEROS INVESTIMENTOS -
Neste sentido, o Ceará
lançou em fevereiro de 2021 o primeiro “HUB” de hidrogênio verde em Pecém, com
uma área de 19 mil hectares, atraindo inúmeros investimentos. Em setembro de
2023, o Conselho Estadual do Meio Ambiente aprovou a implementação do HUB. Já em
outubro, a Superintendência Estadual do Meio Ambiente entregou a licença prévia
do HUB ao Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Esta ação motivou outros
estados, como o Porto do Açú no Rio de Janeiro (Eletrobras e Prumo), Suape em Pernambuco
(TechHub Hidrogênio Verde). Há outros, ainda em fase inicial, no Rio
Grande do Norte, Piauí e Minas Gerais.
A maior motivação vem do fato de que, em
2023, o estado produziu aproximadamente
2,6 GW de energia eólica, representando cerca de 46% da capacidade total de
geração de energia do estado, que é de 5,6 GW. A geração solar fotovoltaica ficou
em 1,6 GW, distribuídos em 35 empreendimentos. Como a capacidade instalada de
energia eólica no Brasil em 2023 foi de aproximadamente 4,9 GW e a solar fotovoltaica
foi de 4,5 GW, o Ceará contribuiu com 53 % em eólica (31% em 2022) e 35 % em
solar (27 % em 2022) à matriz energética elétrica brasileira, no ano passado, confirmando
sua liderança nacional, de acordo com dados da Câmara de Comercialização de
Energia Elétrica. Vale o destaque do rápido crescimento de 2022 para 2023.
Os
fatores favoráveis à criação do HUB são além, claro, da disponibilidade abundante
de energias limpas, a localização mundial privilegiada para transporte marítimo,
os incentivos tributários e a infraestrutura portuária para exportação
(parceria com o porto de Roterdã nos Países Baixos, para exportação de hidrogênio
verde para a Europa).
O HUB de hidrogênio verde no complexo do Pecém, no Ceará,
tem avançado, significativamente, nos últimos meses. Em outubro de 2024, o
Conselho Nacional das Zonas de Processamento de Exportação aprovou o maior
projeto de produção de hidrogênio verde em larga escala do país, a ser
instalado em Pecém. O projeto, liderado pela Brasil Fortescue Sustainable
Industries Ltda, prevê um investimento de R$ 17,5 bilhões. A fase de
operação está prevista para agosto de 2028.
As aplicações do hidrogênio verde como
combustível limpo vão além da geração de eletricidade e calor, mais
eficientemente, em sistemas de células a combustível. Também podem ser
queimados em vários setores da economia em processos físicos e químicos, como
na siderurgia verde (principalmente para a produção de aço verde); na pecuária
verde (como produção de carne, leite e outros produtos de origem animal,
minimizando impactos ambientais), etc. O comércio mundial está cada vez mais
exigente sobre estas questões. Exemplo disso são os recentes entraves do acordo comercial
Mercosul/União Europeia, onde questões ambientais emperram a desfecho do
acordo. Uma ferramenta importante neste contexto de descarbonização do planeta
é a ideia do Crédito de Carbono, discutida a seguir, embora o mais importante
mesmo seria o abandono do uso de combustíveis fósseis.
MERCADO DE CRÉDITO DE CARBONO
-
O projeto de lei que cria o Mercado Regulado de Carbono no Brasil foi
aprovado no Senado em 13/11/2024 e agora precisa ainda de um período para ser
regulamentado, num prazo de dois anos, depois de ser sancionado pelo presidente
Lula. O projeto determina limites para emissões de gases do efeito estufa,
causadores do aquecimento global e suas recentes catástrofes climáticas
associadas. Será obrigatório para empresas que emitem mais de 10 mil toneladas
de poluentes por ano.
Assim, se uma
empresa ultrapassa essa quota, poderá comprar créditos de carbono de outra
empresa que emitiu menos ou deixou de emitir, usando tecnologias limpas. Cada
tonelada de carbono que deixa de ser emitida equivale a UM CRÉDITO, que tem um certo
valor financeiro que pode ser negociado. Agricultura e pecuária ficaram fora do
projeto. Os estados da federação poderão ter seus próprios mercados de carbono.
Vale lembrar que o mercado voluntário de Crédito de Carbono já está em operação
prática no país para pessoa física, empresa ou governos, sem ser ainda
obrigatório.
Desse modo, a Política Brasileira sobre o Clima pode passar
a integrar as futuras transações internacionais. Em Baku, Azerbaijão, na COP 29
(Conferência do clima da ONU, novembro de 2024) o Brasil se comprometeu a
reduzir as emissões de 59 % a 67 % até 2035. Especialistas e
ambientalistas disseram que o Brasil poderia e pode fazer ainda muito mais. Todo
esse processo regulatório tende a ser acelerado, de modo que o país chegue na
COP 30 em Belém do Pará em 2025 com estre trunfo político nas mãos.
Ainda sobre
a recente COP 29, depois de muitas negociações saiu um decepcionante e vago acordo
sobre a elevação do fundo de países ricos para países emergentes/pobres de US$ 100 Bilhões
para US$ 300 Bilhões, muito aquém dos desejados US$ 1.300 Bilhões, anuais até
2035, para mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, ou seja, redução das
emissões em geral. Marina Silva, nossa Ministra do Meio Ambiente disse em Baku:
“Esse valor é insuficiente. Estamos pedindo meios para implementar medidas que
são em benefício de todo o planeta, inclusive dos países desenvolvidos”.
Portanto, é consenso que o documento apresenta falhas, pois não deixa explicito
de onde vai sair a verba do fundo, referindo-se a fontes públicas e privadas de
uma forma genérica, além de não citar limites ao uso de recursos fósseis para
gerar energia. O setor privado, por exemplo, não é signatário destes acordos
climáticos. Obviamente recursos públicos de países ricos seriam as fontes mais
seguras.
Após nove anos de debates, a COP 29 aprovou, entretanto, uma
arquitetura de regras de um Mercado Global de Crédito de Carbono, ao
qual o Brasil deve agora se adequar, com a sua regulamentação. A maior parte da
verba arrecadada pelo Governo Federal com Créditos de Carbono deve ser aplicada
em projetos que reduzam a poluição causada pelas atividades econômicas. Muita
atitude ficou adiada para a COP 30, em Belém no próximo ano. Presidente Lula
disse: “A COP 30 será nossa última chance de evitar uma ruptura irreversível no
sistema climático”. A conferir.
PONTOS CRÍTICOS -
Concluímos que sem a intenção
de esgotar o assunto, podemos listar alguns pontos críticos para o estabelecimento
da Economia do Hidrogênio globalmente: o hidrogênio, um vetor energético, não
está disponível na natureza, tendo de ser obtido de uma fonte primária. Seu
custo ainda não é competitivo para fins energéticos, mas este fato pode mudar
rapidamente com a produção em grande escala; segurança, manuseio, armazenamento
e transporte do hidrogênio (entretanto, a tecnologia pode equacionar estes itens,
como ocorreu com outros tipos de combustíveis no passado); redução do preço das
células a combustível e também dos eletrolisadores (aumento de escala pode ser
a solução); mudança de paradigma na indústria, onde toda uma forma de produção
de energia e de meios de transporte têm de ser modificada drasticamente; inserção
de carros elétricos no mercado, sendo os de bateria os mais comuns e já existem
também os híbridos equipados com células a combustível a hidrogênio.
Quatro notícias
recentes demonstram mudanças de cenários: (1) Em 2023, o mundo adicionou 50 %
mais capacidade geradora em energias renováveis e, em 2028, elas já devem
atingir 42 % da geração global de energia elétrica (nossaenergia.petrobras.com.br). Estes
dados mostram que a transição energética já começou. A sua velocidade de
implementação é a incerteza. (2) O preço dos carros de emissão zero (incluindo
os elétricos, desprezando emissões da sua produção) tem-se reduzido ano a ano,
seguindo a curva de aumento de escala e aprimoramento tecnológico, como ocorreu
com os veículos de combustão interna há 100 anos. No Brasil, o Renault Kwid
E-Tech é o carro elétrico mais barato, com preço de R$ 99.990 (www.quatrorodas.abril.com.br). (3) A
empresa Bosch anunciou cortes massivos de mais de 5 mil postos de
trabalho, alegando que o setor automotivo está em crise, devido à transição
para os veículos elétricos. É apenas a ponta do iceberg, com grande parte
dos cortes na Alemanha. Esta notícia demonstra, inequivocamente, a mudança no
mercado de tecnologias automotivas (www.poder360.com.br).
(4) O Brasil acaba de inaugurar sua primeira fábrica de hidrogênio verde, em
Minas Gerais. Trata-se da empresa Neuman e Esser Brasil, que incorporou
a nossa Startup HYTRON. A nova fábrica tem capacidade para produzir até
70 MW/ano de geradores de hidrogênio conteinerizados e poderá entregar até
sete vezes mais eletrolisadores na comparação com o volume produtivo atual da
empresa (https://www.autodata.com.br/noticias/2024).
Portanto, percebemos que há urgência para a criação de uma nova infraestrutura
mundial para este novo vetor energético: o hidrogênio. De uma maneira gradativa
e segura deverá surgir uma coexistência entre a geração centralizada e geração
distribuída de energia elétrica. Tecnologicamente, este ponto crítico pode ser
superado, sem maiores problemas. A Economia do Hidrogênio é uma peça-chave na
descarbonização do planeta e na mitigação das mudanças climáticas, embora
enfrente ainda desafios tecnológicos e econômicos. Avanços em inovação e
políticas públicas adequadas podem transformar o hidrogênio em um pilar da
transição energética, promovendo um futuro mais sustentável. Neste contexto o
Brasil é privilegiado, pois devido às suas características pode ser um líder na
produção e exportação de hidrogênio verde a partir de várias rotas tecnológicas
(vento, sol, biomassa), fortalecendo o importante conceito de democratização de
fontes primárias de energia.
PERFIL -
MARCELO LINARDI -
Pesquisador
Emérito do IPEN, no Centro de Células a Combustível e Hidrogênio; graduado em
Engenharia Química pela Universidade Estadual de Campinas (1983), com mestrado
em Ciências Nucleares pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (1987),
doutorado em Engenharia Química - Universitat Karlsruhe (1992) e Pós-Doc pela
Universidade de Darmstadt, Alemanha em 1998; autor de vários livros, entre
eles, “O IPEN e a Economia do Hidrogênio”, Editora SENAI, 288p, São Paulo,
2022. Exemplares podem ser solicitados, gratuitamente, em superintendente@ipen.br -
(Foto: Acervo pessoal) –
COLABORE
COM O BLOG – SEIS ANOS DE JORNALISMO INDEPENDENTE – CONTRIBUA VIA PIX: 21
99601-5849 – CONTATO: malheiros.tania@gmail.com