terça-feira, 6 de outubro de 2020

Célio Bermann critica retomada de exploração de minas de urânio e alerta sobre riscos de contaminação por radiação

 


Casos de câncer na população próxima a jazidas de urânio; acidentes que contaminaram parte de rios e solo; caminhão tombado, deixando amostras de rochas com material radioativo pelas praças onde crianças brincaram. São alguns dos relatos de um dos maiores conhecedores da trajetória nuclear brasileira, com participação ativa em pesquisas de campos, nos últimos 30 anos: o professor Célio Bermann, do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP). 

Doutor em Engenharia Mecânica na área de Planejamento de Sistemas Energéticos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em Engenharia de Produção na área de Planejamento Urbano e Regional pela COPPE/UFRJ e graduado em Arquitetura e Urbanismo pela USP, ele fala com exclusividade ao BLOG. Critica as ações para a retomada da exploração urânio e o projeto de construção de uma usina no Nordeste. “O quadro é caracterizado pela desinformação, resultado desta incapacidade do setor nuclear de se abrir, permanecendo como “Caixa preta”. Eis a entrevista. 

BLOG:  O governo pretende retomar a exploração da mina de urânio do Engenho, em Caetité, na Bahia. É confiável o histórico de segurança no setor da mineração de urânio no Brasil? 

BERMANN: O Brasil teve o primeiro local de exploração de urânio em Caldas (MG) cuja mina se encontra atualmente esgotada. Essa exploração do minério deixou uma barragem com rejeitos que coloca em risco a região em caso de rompimento. Vários casos de câncer nos trabalhadores da mina foram notificados pelos serviços de saúde local, muito embora a relação causa-efeito com a exposição a material radioativo nunca tenha sido estabelecida. 

A partir do ano 2000, o local de exploração de urânio no país passou para os municípios de Lagoa Real e Caetité (BA), onde a estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB) explorou o minério até 2014. Nessas minas também não faltaram problemas graves ligados à mineração do material radioativo. 

BLOG: Problemas de saúde? 

BERMANN: Sim. Casos de câncer na população local provocados pelo contato com a radiação e danos ao ambiente. Entre 2000 e 2009, houve pelo menos cinco acidentes que contaminaram parte dos rios e solo da região, de acordo com um relatório da Secretaria de Saúde da Bahia. 

Mesmo assim, em outubro de 2019 a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) emitiu licença autorizando operações na mina do Engenho, que é parte da usina de beneficiamento nuclear da INB em Caetité. Com isso, a exploração do urânio na região foi retomada. 

BLOG: A justificativa pela mineração de urânio é de que vai gerar muitos recursos..

BERMANN: O que parece explicar essa obsessão pela exploração do urânio é o fato de o Brasil possuir reservas estimadas em 309.200 toneladas, o que situa o país como uma das maiores reservas do mundo. Mas creio que esta retomada tem a ver com a decisão estratégica de cunho militar de controle de todo o ciclo nuclear, iniciando com a exploração do urânio para alcançar propósitos de uso pacífico, sempre alegados, mas de difícil controle social. 

O objetivo econômico não deve ser a razão desta retomada, pois o preço do minério no mercado internacional não deixou de cair, notadamente após o acidente de Fukushima no Japão, em março de 2011. 

O minério é comercializado no mercado internacional na forma de concentrado de urânio (U3O8), também denominado yellowcake. Ele é cotado em dólares por libra-peso (US$/lb). Sua cotação já alcançou 140 US$/lb em junho de 2007. Em janeiro de 2011, antes do acidente de Fukushima, sua cotação era de 72,50 US$/lb, mas em agosto daquele ano caiu para 49,15 US$/lb. A partir daí, não parou de cair, chegando a atingir apenas 17,75 US$/lb, em novembro de 2016. Hoje, oscila entre 29 e 31 US$/lb. 

Qual então seria a vantagem de nos tornarmos exportadores desse minério num mercado que só tende a se restringir, ao contrário do que se apregoa pelo insistente lobby nuclear? 

BLOG: Está e andamento o Consórcio Santa Quitéria, parceria da INB com a empresa privada Galvani, para a exploração de urânio e fosfato, em Itataia, no Ceará. 

BERMANN: Este projeto é antigo. Envolvia inicialmente a Nuclebrás (empresa que antecedeu a INB) e a Fosfertil (empresa administrada pela holding Petrofértil, da Petrobras), pois o minério a ser explorado é constituído pela associação do urânio com o fosfato. 

BLOG: Conhece bem o projeto? 

BERMANN: Em 1987 eu trabalhava como consultor no projeto Itataia e tive a oportunidade de conhecer de perto a irresponsabilidade e o descaso com que a Nuclebrás administrava os trabalhos de prospecção da mina.

BLOG: Pode relembrar? 

BERMANN: Em novembro daquele ano estive na região para levantar dados para os estudos de viabilidade econômica e avaliação de impacto ambiental do projeto. Amostras de rochas retiradas da mina eram enviadas para análise em Caldas (MG), onde o urânio era naquela época explorado pela Nuclebrás. 

Encontrei amostras de rochas deixadas na praça central do distrito denominado Lagoa do Mato próximo à mina de Itataia. O caminhão que vinha de Minas Gerais para carregar as amostras tinha quebrado no caminho. Os funcionários da Nuclebrás que trabalhavam na mina não tiveram dúvidas. Deixaram as amostras expostas na praça onde crianças brincavam e com diversos animais como cabras, porcos e galinhas. 

BLOG: O que aconteceu depois? 

BERMANN: Quando teve conhecimento de que os isótopos presentes naquelas pedras apresentavam um nível significativo de radioatividade, a população do vilarejo exigiu da Nuclebrás a interrupção das atividades de prospecção da mina. Soube mais tarde que comerciantes, políticos da região e representantes da paróquia local se deslocaram em caravana até a capital Fortaleza onde se localizava o escritório central da Nuclebrás. 

 BLOG: Como souberam do perigo?

BERMANN: Essa população havia sido alertada pela mídia (rádio, TV e jornais) dos problemas da radioatividade com o acidente radiológico do césio 137 ocorrido em Goiânia em setembro daquele ano. Lembro também da exposição realizada por técnicos da Nuclebrás, quando fui conhecer as instalações relatando que a água que era retirada da mina durante os trabalhos de prospecção... 

BLOG: O que acontecia? 

BERMANN: Essa água acabava sendo utilizada para irrigar a horta onde eram cultivados diversos produtos servidos nas refeições dos trabalhadores da mina, como alface, tomate, batatas, entre outros. No relato, esses técnicos indicavam que todos os produtos que serviam para a alimentação eram monitorados. Afirmavam que o índice de radioatividade detectado nos alimentos eram muito baixos e não ofereciam risco à saúde dos trabalhadores da mina, esquecendo-se de que o efeito da radioatividade é cumulativo, isto é, o organismo acumula ao longo do tempo a radiação a que o organismo está sendo exposto. 

BLOG: Há relatos de doenças? 

BERMANN: Ao longo dos anos que se seguiram, na região vários casos de câncer foram observados nos trabalhadores da mina, sem que a relação causa-efeito tivesse sido estabelecida.  O projeto de exploração da mina de Itataia acabou sendo “esquecido” até 2009 quando foi formado esse Consórcio Santa Quitéria composto pela INB e pela empresa de fertilizantes Galvani. 

BLOG: O que sabe mais sobre esse projeto? 

BERMANN:  Os estudos foram retomados. Em 2014 foi iniciado o processo de licenciamento ambiental junto ao Ibama. Cabe ressaltar que a licença ambiental já havia sido obtida pela INB em 2004, concedida pela Superintendência Estadual do Meio Ambiente do Ceará (SEMACE). Entretanto, o fato de tratar-se de um empreendimento relacionado com atividades nucleares, levou o Ministério Público Federal (MPF) a solicitar na Justiça, através de Ação Civil Pública, o cancelamento da licença ambiental concedida pelo órgão estadual, passando então para a esfera federal (Ibama) a competência do processo de licenciamento. 

BLOG: O que aconteceu depois? 

BERMANN: O licenciamento seguiu até que, em fevereiro de 2019, o projeto de instalação da usina foi negado pelo Ibama. Segundo o órgão, à época, o "projeto de mineração de fosfato e urânio foi arquivado em razão da inviabilidade ambiental do estudo apresentado". Na decisão o órgão apontou a "ausência de dados sobre radiação" no manejo do urânio, "subdimensionamento de riscos", "ausência de efetividade das medidas mitigadoras", "ausência de comunidades no diagnóstico social" e a "falta de simulação computacional sobre dispersão de poluentes radioativos". 

BLOG: Como obter maiores informações sobre o caso? 

BERMANN: No meio acadêmico podem ser encontrados muitos estudos como o artigo de Medeiros e Diniz publicado em 2015 sob o título “A mina de Itataia em Santa Quitéria-CE: o urânio e os risco da exploração”. No entanto, o projeto ganhou novos contornos com a recente assinatura de um memorando entre o governo do Ceará e o Consórcio. Sob a alegação de que o projeto foi reestruturado, o anúncio deste entendimento foi acompanhado dos supostos benefícios do investimento previsto e da criação de empregos, como sempre. 

Fala-se também em “destravar” o licenciamento ambiental, o que pode acontecer com o atual processo de desmonte ambiental. Assim, se a “boiada passar”, a exploração do urânio em Itataia poderá ser iniciada em 2023. 

BLOG:  O Governo pretende construir usinas nucleares no Nordeste. O que acha? 

BERMANN: Sei que há o projeto de uma central nuclear em Itacuruba (PE), nas margens do Rio São Francisco, no semiárido nordestino; a intenção mais concreta. Trata-se de uma central com seis reatores, cada um com potência de 1.100 MW, perfazendo 6.600 MW, ou metade da usina hidroelétrica de Belo Monte em capacidade instalada, não em energia gerada. 

No parco material de informação sobre o projeto que a Eletrobras/Eletronuclear disponibiliza, é mencionado o reator AP1000 da empresa americana Westinghouse. A tecnologia utilizada neste modelo de reator a água pressurizada é apresentada como sendo de terceira geração (as usinas de Angra são de 2ª geração) que tem como principal característica um sistema passivo de resfriamento, através de um tanque de água situado acima do reator. Quando esse sistema é ativado, a água flui por gravidade para o topo do reator, onde se evapora para remover o calor. 

É interessante observar que a concepção desse reator, com um sistema de resfriamento que independe do bombeamento de água, foi desenvolvida pelos técnicos da Westinghouse em 2005. Isso, bem antes do acidente nuclear da usina de Fukushima no Japão, que ocorreu em 2011, e que teve como principal causa as dificuldades de resfriamento dos seus reatores com a interrupção do fornecimento de energia para o acionamento das bombas, que foram danificadas pelo tsunami que atingiu as instalações da usina. 

Ou seja, a necessidade de resfriamento do reator nuclear já era uma preocupação da indústria nuclear internacional antes de Fukushima. Dessa forma, o objetivo é apresentar a central nuclear de Itacuruba como “segura”. Mas o maior problema é que o resfriamento dos seis reatores exige uma quantidade de água muito grande. 

BLOG: O que seus estudos apontam? 

BERMANN: Eu fiz os cálculos da demanda hídrica do projeto da central nuclear projetada para o médio São Francisco, baseado nos dados disponíveis no site da Westinghouse para um reator AP1000. 

BLOG: Conclusão? 

BERMANN: O sistema de refrigeração irá exigir o equivalente à metade da vazão mínima registrada em novembro de 2017 na região do médio São Francisco (581 m3/s). Esse volume de água deverá estar disponível o tempo todo, considerando que a central irá operar com um fator de capacidade de 90% (ou cerca de 328 dias do ano). É certo que 70 a 85% desse enorme volume de água será devolvido ao São Francisco, dependendo do tipo de torre de resfriamento utilizada – húmida ou seca. Mas em situações de escassez hídrica cada vez mais frequentes, a disputa pela água poderá alcançar dimensões trágicas para assegurar a demanda hídrica da central nuclear. E ao mesmo tempo, para garantir o abastecimento humano e dessedentação animal, e irrigação das culturas na região do médio São Francisco. Isso sem contar que a água devolvida deverá atingir 33oC, o que comprometerá os ecossistemas das margens do São Francisco. 

BLOG: O projeto das usinas está no plano do governo. 

BERMANN: A primeira versão do Plano Nacional de Energia 2050 indica a intenção de aumentar a capacidade instalada de usinas nucleares no Brasil em 10.000 MW nos próximos 30 anos. Além de Itacuruba, o plano de expansão nuclear também identifica como locais para a construção de usinas nucleares a região do baixo São Francisco, entre a usina hidrelétrica de Xingó até a foz do Rio São Francisco, além de mencionar de uma forma mais geral os estados de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. 

Em todos estes locais, a exemplo das duas usinas nucleares em operação Angra 1 e Angra 2, se apresentam os riscos da radiação num eventual acidente, cuja ocorrência nunca deve ser descartada, apesar das sempre presentes alegações de segurança. E a destinação final dos rejeitos radioativos de alta intensidade que permanece sendo o principal problema das usinas nucleares, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. 

BLOG:  O governo pretende concluir as obras da usina nuclear Angra 3, paralisadas desde 2015, que se arrastam há 30 anos. Qual a sua opinião? 

BERMANN: Conforme o que tem sido divulgado pela imprensa, a obra iniciada em 1984 já custou em torno de R$ 11 bilhões e a Eletronuclear gasta cerca de R$ 10 milhões por mês com a manutenção do canteiro de obras e dos equipamentos já adquiridos. O investimento previsto para a conclusão da obra era de R$ 18,7 bilhões, conforme relatório de fiscalização (TC n. 016.991/2015-0) elaborado pelo TCU-Tribunal de Contas da União, em fevereiro de 2016. 

Ao mesmo tempo, em recente estudo publicado pelo Instituto Escolhas “Angra 3: vale quanto custa?” (abril/2020) é indicado que os gastos que seriam necessários para abandonar a obra de Angra 3 são da ordem de R$ 11,92 bilhões. Para mim, a resposta é simples: abandonaria a obra.  A pergunta que fica é essa: existirá um investidor privado disposto a correr o risco de retomar as obras? Ou será o combalido Tesouro Nacional que irá finalizar aquilo que nunca deveria ter sido iniciado? 

BLOG:  A usina Angra 1 já deveria estar sendo desmontada... mas a Eletronuclear contratou a Westinghouse para projeto de prorrogação da vida útil da usina por mais 20 anos. Qual a sua avaliação? 

BERMANN: A estratégia de estender a vida útil das usinas nucleares está sendo utilizada no mundo inteiro. Usinas mais antigas, que haviam obtido a autorização de operação por 30 anos, têm conseguido estender a autorização para 50 anos. Usinas mais recentes estão obtendo extensão da vida útil de 60 anos. Com isso, evita-se os custos de descomissionamento, demonstrando que alguns investimentos marginais em alguns sistemas de segurança e substituição de equipamentos possibilitam a obtenção da prorrogação da vida útil.  É o que está acontecendo com Angra 1 que começou a operar em 1º de abril de 1982. Com isso aumentam-se os riscos de acidentes. Trata-se antes de tudo de uma temeridade! 

BLOG: O Brasil precisa de fato de energia nuclear? De que forma? 

BERMANN: A razão principal que está presente em todo o arrazoado que defende a energia nuclear como necessária para o país é a segurança energética, que só poderia ser alcançada por uma fonte de base no sistema elétrico, isto é, com alto fator de utilização. 

Este papel era parcialmente exercido pela hidroeletricidade com usinas com grande capacidade de acumulação (grandes reservatórios), que pudessem assegurar a disponibilidade de energia independentemente do regime hidrológico, que em nosso país é marcado por períodos de alta pluviometria alternados, com períodos de estiagem durante o ano. 

Essa capacidade de acumulação foi sendo perdida com a impossibilidade de inundar grandes extensões de terra em regiões de baixa declividade, como ocorre em grandes extensões da Região Amazônica, onde está localizado 2/3 do potencial hidroelétrico a ser explorado. 

BLOG: Qual seria a opção? 

BERMANN: A opção seria a termoeletricidade com fontes fósseis (carvão, derivados de petróleo e gás natural), mas estas alternativas resultariam no incremento das emissões de CO2

A energia nuclear surge então como aquela que poderia cumprir o papel de geração de base, com a alegada vantagem de não emitir dióxido de carbono.  Este é o grande desafio na luta contra a energia nuclear. Ela aparece como “energia limpa”. 

Em primeiro lugar não existe “energia limpa”. O problema é que a questão ambiental não deve se restringir apenas à emissão dos gases de efeito estufa e às mudanças climáticas dela decorrentes. Essa visão equivocada levou cientistas como o inglês James Lovelock, formulador da Teoria de Gaia, a defenderem a energia nuclear como a única fonte capaz de garantir a expansão da oferta de eletricidade por não emitir dióxido de carbono, contribuindo dessa forma para a desejável descarbonização. Ao pensar desta forma restrita, os riscos que envolvem o ciclo nuclear desde a mineração até a produção de energia, são desconsiderados. Riscos severos ilustrados pelos acidentes das usinas de Three Mile Island (1979), Chernobyl (1986), Fukushima (2011), apenas para citar os mais conhecidos, passam a ser negligenciados, “porque a energia não emite gases de efeito estufa”. Esta é uma falácia que precisa ser combatida, para o bem da ciência e da humanidade! 

BLOG: Há alternativas? 

BERMANN: Penso que é possível garantir a segurança energética sem depender de uma fonte que atue na base. Essa segurança pode ser alcançada com uma gestão energética descentralizada, que complemente o atual sistema elétrico interligado centralizado. Há tecnologias já disponíveis para tanto. E há alternativas energéticas como o sol, o vento e as biomassas que podem contribuir de forma articulada através de sistemas híbridos para a garantia da segurança energética em grande escala.  Todavia não podemos descartar os benefícios da energia nuclear em pequena escala, no que se refere aos seus usos médicos e industriais, onde mostra uma utilidade relativa, que pode ser assegurada por reatores de pesquisa de baixa potência. 

BLOG:  Com os planos de construir mais usinas, retomar as minas, o Brasil estaria na contramão mundial? 

BERMANN: Conforme informações consolidadas, para dezembro de 2018, da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), 450 reatores estavam em operação e 55 em construção. Vale observar que em 2000 o número de reatores era de 435, ou seja, nos últimos 15 anos apenas 15 reatores foram instalados para operação. Quantos aos 55 reatores considerados “em construção” ao menos 2/3 deles estão nessa situação a mais de 20 anos. Os países que estão mais envolvidos na construção de novas usinas nucleares são a China (11), Índia (7), Rússia (6), Coréia do Sul (5) e Emirados Árabes (4). 

Muitos países têm desligado seus reatores por diversos fatores, mas se tomarmos o acidente da usina de Fukushima no Japão em 2011 como referência, após o acidente o Japão desligou 16 reatores nucleares; a Alemanha, 10 ; e os Estados Unidos 7. 

BLOG:  No mundo, esses projetos não estão entusiasmando tanto? Por quê? 

BERMANN: Os projetos de construção de novas usinas nucleares têm enfrentado aumento dos custos inicialmente previstos e extensão do tempo para o término das obras. Nos Estados Unidos, por exemplo, dois reatores AP1000 estão sendo construídos na central nuclear de Vögtle (unidades 3 e 4). A construção foi iniciada em março de 2013 (unidade 3) e novembro de 2013 (unidade 4) a um custo inicial de 6,1 bilhões de dólares, e previsão de entrada em operação em 2016 e 2017, respectivamente. 

Com o pedido de falência da empresa Westinghouse em março de 2017 as obras foram interrompidas e retomadas depois da intervenção do governo americano para salvar a empresa. A previsão para a entrada em operação da unidade 3 agora é para novembro de 2021, e para novembro de 2022 da unidade 4, previsão que tinha sido definida antes da pandemia. Por sua vez, o custo se elevou para 10,4 bilhões de dólares. 

A unidade 3 da usina Olkiluoto na Finlândia, com capacidade bruta projetada de 1.750 MW utilizando o reator EPR (European Pressurized Water Reactor) traz como inovação uma unidade de contenção (“core catcher”) para evitar um derretimento do núcleo, e cujo fabricante é a empresa Framatome ANP (franco-alemã), com um custo previsto de 3,2 bilhões de Euros. A construção foi iniciada em agosto de 2005 com previsão de término em 57 meses (maio de 2010). Estamos em 2020 e a usina ainda não começou a operar comercialmente. Já seu custo se elevou para 8,5 bilhões de Euros.  

Em resumo, o mundo está reduzindo de forma significativa a utilização da energia termonuclear, como os dados evidenciam. E onde se busca prosseguir com essa forma de produção de eletricidade, as usinas demoram muito mais para ficarem prontas e acabam custando muito mais que o inicialmente previsto. O Brasil precisa seguir os fatos e não se meter em aventuras com novas usinas nucleares. 

BLOG:  Como avalia a questão do lixo atômico nuclear no Brasil e no mundo? E como avalia o armazenamento do urânio irradiado, que será transferido para a UAS entre 2021 e 2022? 

BERMANN: O fato de 90% das 450 usinas nucleares em operação no mundo depositarem os resíduos de alto nível de radiação nas piscinas e não terem um depósito definitivo demonstra o verdadeiro “calcanhar de Aquiles” da energia nuclear. 

E não adianta amenizar o problema, dizendo que não existe lixo atômico, mas apenas rejeitos a serem reprocessados. O reprocessamento, onde esteja sendo executado, leva à obtenção do plutônio, cuja meia-vida chega a 24.110 anos e possui o perigoso destino de artefato militar nuclear. 

BLOG:  Como avalia a comunicação do setor nuclear oficial com a sociedade? 

BERMANN: As informações sobre a situação das usinas nucleares no Brasil sempre estiveram restritas ao que as empresas disponibilizam em seus sítios na web, por exemplo. Esses espaços limitados ao que é noticiado na imprensa, com eventuais respostas às matérias que a empresa julga desfavoráveis à energia nuclear. No “Acesso à informação’, estão as informações institucionais com vários linques: despesas; licitações e contratos. Trata-se de uma forma de as empresas se apresentarem como “transparentes” apenas nos títulos de seu sítio, sem fornecer nenhuma informação sobre o que se diz disponibilizar. Portanto, é extremamente difícil para um pesquisador como eu, ou para o público em geral, ter informações sobre as questões da energia nuclear, como as usinas. São mantidos em sigilo acidentes de diversas ordens, vazamentos, interrupções não previstas, suas causas e consequências, trazendo insegurança às populações que vivem nas proximidades das instalações. 

BLOG: Como avalia a mobilização da sociedade civil em relação ao programa nuclear brasileiro? 

BERMANN:  O quadro é caracterizado pela desinformação, resultado desta incapacidade do setor nuclear de se abrir, permanecendo como uma “caixa preta”. Por ocasião do acidente nuclear na usina nuclear de Fukushima, as pesquisas de opinião pública na época situaram a população brasileira como uma das que mais demonstraram preocupação com os riscos de acidentes nucleares.

9 comentários:

  1. Tania, como sempre, bela entrevista!

    ResponderExcluir
  2. Pena que assunto tão importante e relevante não chega à população, que ignora os riscos que pode sofrer. Sua entrevista é excelente e oportuna. Parabéns!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Gratíssima por sua participação sempre valiosa. Contamos sempre com o seu olhar em nosso trabalho, o que nos fortalece.

      Excluir
  3. parabéns! a próxima é comigo sobre o plano de emergência em Angra hein...quando pudermos. abraços

    ResponderExcluir
  4. Muito obrigada por participar! Uma grande força a sua mensagem, a sua opinião.

    ResponderExcluir
  5. Grata, seu blog é de excelência por quem se preocupa com a questão nuclear.

    ResponderExcluir
  6. Quanto mais sabemos sobre o ciclo da energia nuclear, mais longe devemos ficar desta irresponsabilidade com as pessoas e o meio ambiente!

    ResponderExcluir
  7. Quanto mais sabemos sobre o ciclo da energia nuclear, mais longe devemos ficar desta irresponsabilidade com as pessoas e o meio ambiente!

    ResponderExcluir