Há
mais de 30 anos, uma paulista de Ribeirão Preto, vem jogando luz e abastecendo
a sociedade de informações sobre os perigos causados pelo amianto (produto
cancerígeno). Neta de imigrantes italianos, para levar
adiante o árduo trabalho em prol da saúde e segurança dos trabalhadores,
enfrenta uma engrenagem de poder que movimenta e alimenta gigantes da economia.
Em comemoração ao Dia Internacional da Mulher (8/3), o Blog entrevista FERNANDA
GIANNASI, engenheira civil e de segurança do Trabalho, pioneira na luta contra
o amianto, que abraça outras causas, como a defesa dos trabalhadores da
tecnologia nuclear e sílica. Desde a década de 90, é coordenadora da Rede Virtual-Cidadã
pelo Banimento do Amianto para a América Latina; e fundou a Associação
Brasileira dos Expostos ao Amianto (ABREA). Premiada no Brasil e
exterior, pelo conjunto da obra, já recebeu ameaças, mas avisa: “Começaria tudo
outra vez, se preciso fosse”, como cantou Gonzaguinha.
BLOG: Um dos maiores conglomerados
produtores de amianto no mundo, a Eternit S.A. do Brasil e sua subsidiária SAMA S.A.
– Minerações Associadas, anunciaram recentemente o fim definitivo da produção
de materiais de construção e do fornecimento da fibra “ in natura” para o
mercado nacional. Anunciaram também que suspenderam provisoriamente a produção
para exportação do mineral até decisão final sobre recursos impetrados no
Supremo Tribunal Federa (STF). Isso quer dizer que a produção no Brasil ainda
existia? Não foi proibida? Por que as empresas não respeitaram tal decisão?
Fernanda: Realmente a produção, comercialização
e utilização do amianto foram proibidas pelo STF, para todo o território
nacional, em 29/11/2017. Para nossa surpresa, em 20 de dezembro do mesmo ano, às
vésperas do recesso da Corte, a ministra Rosa Weber concedeu liminar a pedido
da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI) e Instituto
Brasileiro do Crisotila (IBC), entidade lobista financiada pela indústria,
abrindo uma exceção ao que fora decidido pelo colegiado do STF até que a
sentença do histórico julgamento fosse publicada, o que só ocorreu em
1º./2/2019; isto é, mais de um ano após o julgamento.
BLOG: O que ocorreu em seguida?
Fernanda:
Foi permitida, ao longo de mais de um ano, em caráter provisório, a
continuidade da produção nos estados, que não têm leis próprias de banimento,
como é o caso de Goiás. Lá, é onde está situada a terceira maior mineração de
amianto no mundo e onde se encontra o forte movimento de resistência ao
banimento do mineral cancerígeno. Assim, essas empresas ganharam uma sobrevida;
portanto, não podem se queixar que não tiveram tempo suficiente para se
organizar e cumprir a sentença proferida.
BLOG: Diante da decisão, o que foi feito?
Fernanda:
A Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (ABREA) se posicionou
fortemente contrária à liminar concedida e recorreu ao STF para tentar impedir
que esta surtisse efeito, mas infelizmente não foi atendida. A mineradora
(SAMA), uma fábrica da subsidiária da Eternit em Anápolis (Goiás), chamada
Precon Goiás Industrial Ltda., e uma de Pedro Leopoldo (Minas Gerais), a Precon
Industrial S. A., continuaram a produzir até recentemente.
BLOG: Quais os recursos estão
sendo impetrados?
Fernanda: A ABREA recorreu imediatamente da decisão da
Ministra Rosa Weber e impetrou pedido de sua suspensão no plantão do recesso
judiciário e peticionou recentemente manifestação contrária aos recursos
apresentados pelos defensores do amianto, que pleiteiam a continuidade da
mineração, para fins de exportação, por mais 10 anos ainda. Aguardamos,
ansiosamente, a apreciação e julgamento final pelo colegiado dos ministros do
STF de todas as petições e memoriais por nós apresentados.
BLOG: Quantas pessoas foram
vitimadas pelo amianto no Brasil? Há provas documentais sobre quantas pessoas
morreram no Brasil?
Fernanda: Um número preciso de vítimas do amianto no Brasil
ainda não nos foi possível obter, nem através de dados oficiais da Previdência
Social, nem do Ministério da Saúde. Trabalho inédito do pesquisador da Fiocruz,
Francisco Pedra, concluiu que “ao longo de 31 anos, entre 1980 a 2010,
ocorreram 3.718 óbitos por Mesotelioma (o câncer do amianto), no Brasil”; dados
estes que foram colhidos do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do
DATASUS. Comparando nossa estatística a de outros países, em situações
semelhantes de grandes produtores e/ou usuários, percebemos por aqui que a
mortalidade por mesotelioma é baixa e não corresponde à intensidade da produção
e do uso do amianto ao longo do tempo. Portanto, presume-se uma imensa
subnotificação de casos de doenças relacionadas ao amianto, cujos dados
visíveis são a ponta de um imenso iceberg submerso.
BLOG: Por quê?
Fernanda: Por conta de
vários motivos: o silêncio
epidemiológico reinante no país em função de diversos mecanismos de
invisibilidade social, tais como a inércia das instituições de saúde, que não
cumprem seu papel de vigilância epidemiológica previsto na legislação; pelos
pactos estabelecidos entre empresas e vítimas, através de acordos
extrajudiciais (mais de três mil instrumentos particulares de transação foram firmados
pelas duas empresas líderes do mercado de fibrocimento e da mineração), que
remuneram parcamente o silêncio das vítimas e de seus familiares pelas doenças
adquiridas; por liminar protegendo 17 empresas de não serem obrigadas a
informar os dados de seus trabalhadores expostos e doentes para os órgãos de
saúde; a dificuldade de diagnóstico e a disponibilidade de recursos
sobretudo tecnológicos para tal.
BLOG: É um problema sistêmico de grande subnotificação como ocorre com
outras doenças provocadas pelo trabalho?
Fernanda: Certamente. Outro
agravante para esta subnotificação está no fato de que as doenças relacionadas
ao amianto são de longa latência, isto é, levam em média de 20 até 60 anos para
se manifestarem, após o primeiro contato com o mineral, quando em geral o
trabalhador já não está mais no seu local de trabalho. Infelizmente, na área
médica, não há investigação sobre a vida profissional pregressa do paciente. Para
os casos conhecidos na ABREA, fazemos gestão junto aos órgãos da Previdência
Social como os da Saúde para fins de registro.
BLOG: Quantas estão em tratamento?
Fernanda:
Em
todo o país, por onde se utilizou o amianto de maneira intensiva e sem nenhum
controle, diariamente nos deparamos com novos casos de doenças sendo
diagnosticadas, entre as quais a asbestose (fibrose pulmonar que endurece o
pulmão, tornando-o rígido – o chamado “pulmão de pedra”), diversos tipos de
cânceres, entre eles o de pulmão, laringe, aparelho digestório, ovário, túnica
vaginal e o mesotelioma, chamado o “câncer do amianto”, que atinge as membras serosas
que envolvem o pulmão (pleura), a cavidade abdominal (peritônio) e o coração
(pericárdio). São centenas de casos em tratamento nas diversas estruturas do
Sistema Único de Saúde (SUS) e em entidades privadas para aqueles que
celebraram os acordos extrajudiciais.
BLOG: Há indenizações?
Fernanda: Com a Emenda
Constitucional 45, que atribuiu à Justiça do Trabalho o poder decisório em
processos de indenização por doenças adquiridas no e/ou pelo trabalho, os
processos individuais das vítimas do amianto se tornaram mais céleres. E, em
geral, mais bem-sucedidos em relação ao que ocorria anteriormente na esfera
cível, em especial quanto aos valores de dano moral. Nosso país ainda não goza
de uma cultura judicial uniforme sobre as ações civis públicas coletivas, e se
percebe uma certa timidez nos julgamentos destes processos, diferentemente do
que ocorre nas ações individuais. Essas ações, depois da EC 45 têm indenizado
de maneira mais justa e rápida às vítimas e seus familiares.
BLOG: É
verídica a informação de que a Eternit continuará exportando as fibras de
amianto para dezenas de países, incluindo Estados Unidos, Alemanha, Índia,
Indonésia, Malásia e outros países asiáticos? A informação é documentada?
Fernanda: A exportação do amianto in natura só ocorrerá se o STF conceder
a chamada modulação de efeitos; isto é, garantir prazo adicional para a empresa
mineradora SAMA, que clama junto com os trabalhadores e Sindicato por uma “transição
segura” para o encerramento e descomissionamento, que eles entendem ser
necessários em torno de 10 anos. A Sama só parou a produção após a publicação
das sentenças do STF, que ocorreu em 1º./2/2019.
BLOG: Onde estão localizadas as
fábricas de amianto no Brasil? Quantas pessoas trabalham nessas fábricas? Estão
cientes do perigo?
Fernanda: Atualmente só a mineração de
amianto, em Minaçu, continua a explorar a fibra cancerígena. As demais fábricas
substituíram esta matéria-prima reconhecidamente nociva para a saúde dos seres
humanos. Na mineração, atualmente, trabalham 280 empregados na mina de Cana
Brava, da Sama, em Minaçu, no Estado de Goiás. A cidade tem ainda uma
dependência econômica muito grande desta empresa, que é a maior atividade produtiva
do local, o que faz com que a população tenha estabelecido um pacto de
silêncio, negando fortemente a nocividade de sua principal riqueza local. Chamam-na
orgulhosamente de a “capital nacional do amianto”. Isso pode ser visto no
pórtico de entrada da cidade, em equipamentos públicos, como escola, hospital e,
mesmo os privados de Minaçu que têm a marca registrada do poderio econômico
exercido pela atividade de exploração do minério de amianto. Podemos ver também
na decoração do principal hotel da cidade, que tem o sugestivo nome de
CRISOTILA (o amianto branco explorado em Minaçu) Palace Hotel e até no
aeroporto e na porta do fórum, que ostentam enormes pedras do minério in natura.
BLOG: O que as autoridades da saúde no Brasil têm
feito pelas vítimas do amianto? E as autoridades da segurança do trabalho?
Fernanda:
Muito pouco tem sido feito pelos órgãos de saúde e trabalho, em geral, no
país, com raríssimas e notórias exceções como o ambulatório de pneumologia da
Fundacentro e do INCOR em São Paulo e o da Fiocruz no Rio de Janeiro, que
realizam os diagnósticos das doenças relacionadas ao amianto dos ex-empregados
expostos. As fiscalizações praticamente estão paralisadas pelo desmonte de
órgãos como o Ministério do Trabalho, restando apenas sabidamente a vigilância
sanitária do estado de São Paulo e do município do Rio de Janeiro, que têm
realizado diligências esporádicas nos estabelecimentos comerciais, apreendendo
materiais, contendo amianto, que ainda estão sendo vendidos para a população de
baixa renda, provenientes de estoques remanescentes.
BLOG: Quando a luta pelo
banimento começou no Brasil? O que motivou essa luta?
Fernanda: A luta
pelo banimento no Brasil se inicia mais efetivamente após o evento da
conferência das Nações Unidas (ONU), a UNCED, popularmente conhecida como
a Rio/92, onde tivemos a oportunidade de
conhecer e interagir com movimentos sociais internacionais na luta para a
eliminação dos produtos tóxicos, o qual incluía o amianto, a tecnologia nuclear
etc.
BLOG:
Por que a senhora entrou nessa luta?
Fernanda: Desde 1983,
quando fui admitida em concurso público para a inspeção do trabalho, em São
Paulo, me dediquei a estudar e inspecionar empresas que utilizavam produtos e
tecnologias cancerígenas. Em 1985, constitui com um colega médico o GIA-Grupo
Interinstitucional do Asbesto para fiscalizar as empresas usuárias de amianto
no estado de São Paulo. Isto, no momento em que a Organização Internacional do
Trabalho (OIT), ligada à ONU, discutia se o amianto deveria ser proibido em
todo o mundo ou permitido seu uso sob restritas condições de segurança. Dali
para frente, os enfrentamentos com a indústria do amianto foram se sucedendo e
se tornando cada vez mais acirrados, nos diversos campos, pois enfrentamos um
dos mais organizados e poderosos lobbies industriais mundiais, comparado em
importância e poderio ao do tabaco.
BLOG:
A senhora ganhou o prêmio “Faz Diferença” de O GLOBO por sua atuação
pelo banimento do amianto no Brasil e no mundo. O que representou esse prêmio?
Fernanda:
Representou a coroação de um esforço, inicialmente solitário, mas que foi
ganhando adeptos e se tornando uma luta coletiva ao longo desta jornada de 35
anos. O prestigioso prêmio “Faz Diferença”, na categoria Economia, tornou a nossa
batalha ainda mais visível e palatável para uma grande parcela da sociedade
brasileira e, principalmente, para os formadores de opinião. Uma grande honra
tê-lo recebido junto a tantas personalidades ilustres e famosas deste país.
BLOG:
No Brasil, quais os próximos passos pra acabar de vez com o amianto?
Fernanda:
O mais importante no momento é a celeridade no julgamento dos recursos
opostos após a publicação da sentença, que baniu o amianto no Brasil para
garanti-lo, sem exceções de qualquer tipo ou privilegiando setores produtivos. Além disso, urge o imediato restabelecimento, sem mais prorrogações, dos efeitos erga omnes,
isto é, para todo o território nacional, independente de leis estaduais, e vinculante para todos os poderes,
sem precisar da aprovação do Congresso Nacional.
BLOG: Foi discriminada por ser
mulher?
Fernanda: No início da carreira, sim, por ser mulher,
jovem e engenheira. Mas com o passar dos anos isso foi arrefecendo.
BLOG:
Já sofreu ameaças?
Fernanda: Sim. Mas prefiro virar esta página
e seguir em frente.
BLOG: Tantos anos lutando pelo banimento do amianto, vendo retrocessos,
descasos, isso cansa? Fernanda: Olhando para trás me dou conta
que são mais de três décadas envolvida com esta luta pelo banimento do amianto
e pela saúde dos trabalhadores e trabalhadoras e, honestamente, não senti o
passar dos anos. “Começaria tudo outra
vez, se preciso fosse”, como diria o saudoso Gonzaguinha, sem dúvida. Não foi
fácil, confesso, mas em nenhum momento, mesmo sob intensa pressão e ameaças,
nunca pensei em desistir, pois é uma luta por Justiça, Justiça socioambiental.
Como diriam meus antepassados, “quem sai aos seus não degenera” e a eles devo
esta inquietação contra injustiças e tantas iniquidades existes em nossa sociedade.
PERFIL:
FERNANDA GIANNASI é Engenheira Civil e de Segurança do Trabalho. Auditora
Fiscal do Trabalho por 30 anos no antigo Ministério do Trabalho em São Paulo,
onde atuou na inspeção das condições de saúde e segurança no trabalho com
ênfase na insalubridade, letalidade e periculosidade dos agentes cancerígenos
(amianto, tecnologia nuclear, sílica) e outros tóxicos. Atualmente, aposentada,
é consultora na área de saúde, trabalho e meio ambiente para entidades de
trabalhadores (as) e vítimas de processos industriais, bem como para seus
assessores jurídicos. Fundou a Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto
(ABREA) em 1995 e é coordenadora da Rede Virtual-Cidadã pelo Banimento do
Amianto para a América Latina desde 1993. Tem recebido vários prêmios
importantes nacionais e internacionais entre os quais: a Ordem do Mérito
Judiciário tanto pelo Tribunal Regional da 15ª. região (TRT -15), como pelo
Tribunal Superior do Trabalho (TST) de Brasília. Em novembro de 2018, foi
agraciada com o Prêmio Bernardino Ramazzini de 2018, em homenagem ao Pai da
Medicina do Trabalho, pelo prestigiado Collegium Ramazzini, de Carpi, na
Província de Módena, Itália.
Conheço a Dra Fernanda Giannasi há mais de 20 anos, quando ela esteve em Poços de Caldas para visitar a INB do distrito de Caldas, vizinha cidade de Poços de Caldas, eu a transportei da sede do sindicato METABASE até as dependências da INB onde ela elaborou uma fiscalização e constatou muitas irregularidades que a nossas autoridades não se preocuparam em fazer.
ResponderExcluirPrezado Pedro, agradecemos o seu depoimento. A sua participação é muito importante para o nosso trabalho. Participe sempre. Agradecemos.
ExcluirQue reportagem maravilhosa! Sempre com notícias importantes!
ResponderExcluirPrezado Marcelo Gomes, agradecemos a sua participação, sempre importante para o nosso trabalho. Participe sempre. É muito bom contar com o seu depoimento, a sua opinião. Obrigada!
ExcluirUm trabalho como esse, nós dá subsidio para fortalecer o enfrentamento pela STT!!
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