terça-feira, 28 de setembro de 2021

Acidente com césio-137 em Goiânia, 34 anos depois. Por Célio Bermann

 


No último dia 10 de setembro tive a oportunidade de ouvir o depoimento da pesquisadora Célia Helena Vasconcelos, que em 2019 defendeu a dissertação de mestrado em Letras e Linguística na Universidade Federal de Goiás, com o título “Césio 137 trinta anos depois: silenciamento discursivo de uma tragédia”. 

O depoimento de Célia se deu num debate organizado pela Pastoral da Comunicação da Diocese de Floresta (PE) para lembrar os 34 anos do acidente radiológico de Goiânia / Césio 137. Vale assinalar que a Diocese de Floresta, município localizado no agreste pernambucano, na região do médio Rio São Francisco, onde a Eletronuclear planeja a construção, na cidade de Itacuruba, de uma central nuclear com seis reatores nucleares, busca auxiliar na organização de um movimento local e regional de resistência a este projeto, trazendo para o debate temas nacionais relacionados à energia nuclear. 

Em outra oportunidade voltaremos à discussão sobre a insanidade política, econômica, social e ambiental desse projeto, para nos dedicarmos ao relato de Célia Helena sobre a tragédia em Goiânia, que se inicia no dia 13 de setembro de 1987 e se estende até os dias de hoje. 

Célia Helena tinha 19 anos, era mãe de uma menina de poucos meses, e estava grávida da segunda filha quando, no dia 29 de setembro, técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), devidamente paramentados com roupas para proteção radiológica, bateram à sua porta de casa para proceder a “averiguações”. Sem maiores explicações e trajando macacões brancos que os assemelhavam a “marcianos”, passaram a percorrer os aposentos da casa com cintilômetros, instrumento de precisão utilizado para reconhecer a quantidade e o tipo de radiação. 

A casa de Célia Helena ficava na Rua 26, a 150 metros do depósito de ferro-velho de Devanir, local onde, no dia 15 de setembro, ou seja, 15 dias antes, uma caixa contendo  uma cápsula de cloreto de césio - um sal obtido a partir do radioisótopo 137 do elemento químico césio. A caixa foi aberta a marretadas naquele dia de 15 de setembro, expondo as radiações ionizantes a todas as pessoas próximas, objetos, roupas, alimentos e plantas. 

A caixa havia sido levada por dois rapazes que procuravam sobreviver como catadores de lixo. Dois dias antes, no dia 13 de setembro, eles haviam encontrado um equipamento radiológico que estava desativado havia dois anos, e que fora simplesmente abandonado no prédio onde antes estava localizado o Instituto Goiano de Radioterapia (IGR), e que naquele momento estava sendo demolido. 

Conforme o relato de Célia Helena, os dois rapazes já haviam tentado abrir a caixa, no domicílio de um deles, na Rua 57. Entretanto, apenas conseguiram fazer furos, o suficiente para que as radiações ionizantes de raios-gama do césio 137 se propagassem no ambiente. Um dos rapazes, inclusive, já no primeiro dia, teve enjoos e mal estar, e procurou um posto de saúde. 

Pois bem, a existência de problemas relacionados com a irradiação já era conhecida pelos órgãos de saúde de Goiânia desde o dia 14 de setembro de 1987, problemas que se tornaram mais evidentes depois do dia 15 quando a cápsula contendo o césio 137 foi aberta. Poucas horas após a exposição ao material radioativo, as pessoas que estavam no depósito de ferro-velho começaram a desenvolver sintomas: náuseas, seguidas de tonturas, com vômitos e diarreias. Alarmados, os familiares dos contaminados foram inicialmente a drogarias procurar auxílio, alguns procuraram postos de saúde e foram encaminhados para hospitais. 

Diagnosticados inicialmente com intoxicação alimentar, apenas quando o físico Walter Mendes Ferreira, suspeitando de que se tratava de efeitos da exposição à radiação, recomendou o isolamento dos pacientes, é que a identificação da gravidade do quadro por parte dos órgãos de saúde foi finalmente possível. 

Entretanto, a imediata divulgação à população da cidade de Goiânia da situação de intoxicação radiológica existente foi impedida pela ação do governo de Goiás, que jamais admitiu isto. Naquela mesma época estava sendo realizado em Goiânia o 1º GP Internacional de Motovelocidade no Autódromo Ayrton Senna, e o governador Henrique Santillo não queria que a divulgação causasse pânico e afastasse os participantes estrangeiros. 

Como já foi informado, apenas no dia 29 de setembro, ou 15 dias depois do início da contaminação radiológica, houve a divulgação do problema iniciando assim o processo de monitoramento nas áreas próximas daquelas que estiveram sujeitas aos efeitos das radiações ionizantes. 

Nos dias que se seguiram, os indivíduos identificados com a contaminação radiológica foram encaminhados ao Estádio Olímpico e acomodados em barracas de isolamento. Muitos receberam alta após tomarem banho com água, vinagre e sabão de coco.  Os casos mais graves foram transferidos para hospitais. 

Enquanto que o pânico e o caos se propagavam na cidade de Goiânia e nas regiões próximas, sabe-se que cerca de 112 mil pessoas foram examinadas. Destas, verificou-se que 271 apresentaram níveis significativos de material radioativo. Até hoje não há consenso sobre o número de vítimas do césio 137 em Goiânia. Quatro pessoas morreram um mês após a exposição à radiação. O governo de Goiás registra 66 mortos. O depósito de ferro-velho e dezenas de casas foram demolidos. Centenas de objetos, de refrigeradores a sofás, o pavimento de ruas inteiras, veículos, e até mesmo árvores e animais foram destruídos e descartados como lixo nuclear. 

Cerca de seis mil toneladas de lixo radioativo foram recolhidas e enterradas no município de Abadia de Goiás, a cerca de 20 km de distância de Goiânia, em um local posteriormente transformado pela CNEN no Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste (CRCN-CO), como Unidade Técnico-Científica para abrigar como Depósito Final os rejeitos radioativos do Césio-137. 

Quais lições podemos tirar da tragédia nuclear com o césio-137 em Goiânia? 

A sucessão de irresponsabilidades, primeiramente do Instituto Goiano de Radioterapia que não tomou nenhuma providência para o descarte adequado do equipamento radiológico; posteriormente dos diversos órgãos de saúde cujo conhecimento do risco foi demorado e não resultou na imediata divulgação para a população; do governo estadual, que preferiu preservar o calendário de um evento esportivo ao invés de privilegiar a saúde e segurança da população que estava sendo exposta aos efeitos da radiação. Ainda, os técnicos da CNEN, pela demora em iniciar o monitoramento, e por não disponibilizar para os indivíduos mais expostos os mesmos equipamentos e indumentária que estavam utilizando. 

Cabe assinalar que outro aspecto a merecer destaque é a invisibilidade que o desastre radiológico acabou por ser tratado na cidade de Goiânia. Como destaca Célia Helena, nos terrenos que tinham sido contaminados com a radiação, cujas construções foram derrubadas e cobertas com concreto, não há nenhuma placa, nenhum aviso sobre o que ali havia ocorrido. 

Mesmo a construção de um Memorial na Rua 51, que havia sido uma promessa da administração municipal na época da tragédia, nunca foi concretizada. O desastre radiológico em Goiânia, considerado de nível 5 pela Escala Internacional de Eventos Nucleares da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), como ‘Acidentes com consequências de longo alcance’, segundo nomenclatura da agência, está sendo deliberadamente “esquecido”. Pelo bem da saúde e segurança da população brasileira, não podemos esquecer! 

Artigo de Célio Bermann - Doutor em Engenharia Mecânica na área de Planejamento de Sistemas Energéticos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em Engenharia de Produção na área de Planejamento Urbano e Regional pela COPPE/UFRJ e professor associado do Instituto de Energia e Ambiente da USP.

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